Parado em frente à porta
Ele detesta o verão. O mês de
janeiro 'tá longe de acenar com prenúncios de que a estação quente dará adeus. Pelo contrário, falta muito tempo para o inferno acabar. Uma sensação
estranha de que tudo passa muito rápido o acompanha há dias. A vida dando adeus
a cada segundo. No entanto, hoje acordou com o mundo se movendo em câmera
lenta. O toca-discos ligado no volume mínimo não chega a competir com o
barulho do vento norte lá fora. Ele já queimou todas as fichas, não tem mais
pra onde ir, nem mantém a mínima intenção de se movimentar de onde está. Se ele
voltasse a vê-la, ficaria em dúvida entre matá-la ou beijá-la. Da última vez,
ele ficou de pé, em frente à porta dos fundos, chorando como uma criança,
enquanto o táxi que a levou acelerava estrada abaixo e jogava poeira nos olhos dele.
Um pateta estúpido, é isso que ele é.
Uma lâmpada fica piscando na
cozinha. Deve ser mau contato. A cabeça dele dói com aquele pisca-pisca dos
diabos. Quem sabe quando o suporte da fosforescente despencar sobre
seus cornos ele tome uma providência. É quinta-feira à noite, e a TV
ligada num programa de humor não lhe arranca o mínimo esboço de um sorriso, na
verdade o irrita aos extremos. Desliga. Olha pela janela do corredor e através
do celofane vermelho que foi colocado no lugar de um vidro que quebrou, vislumbra uma
estrela cadente cor de cereja. Pega um copo, coloca três pedras de gelo e
calibra com a última dose de Jim Bean. Gosta de ficar olhando o
dourado do líquido derretendo os pequenos icebergs. Vai até a sala, aumenta o volume do toca-discos e dá uma sacada na capa de um coletâneas de guitarristas da Atlantic
Records. “Travellin’ blues” do cego McTell parece perturbar o danado do
fantasma que ainda o assombra. Noite após noite, aquele demônio não dá
pintas de que vai dar o fora dali.
Ele sabe, quando amanhecer,
nada de diferente está previsto no boletim de ocorrências. O trem vai continuar passando na Sete de
Setembro e o sino da Catedral irá badalar no mesmo horário. Todos sabem por que
o trem ainda se movimenta sobre os trilhos e por quem os sinos dobram. Esse
assombroso replay o deixa intrigado. E seu corpo já sacou faz tempo, ele não
pode vencer nenhuma maldita guerra. Mas certo coração não desiste. Uma noite
dessas – Ele dançou com uma estranha, e aquela mulher só lhe fez lembrar que
ainda existe outra pessoa dentro dele.
A geladeira está vazia. Na
verdade, há uma maça mofando por lá faz um bom tempo. Não importa. Ele comerá
quando tiver fome, beberá quando tive sede. Vai tocar sua suposta vidinha sem
perspectivas até onde der pé. E mesmo quando seu corpo começar a perder as
forças, ainda assim manterá esperanças de que seu amor retorne pela mesma porta que
um dia saiu. Daí o toque suave da mão dela vai acariciar o seu rosto e resgatar
a velha magia que os movia antigamente. Existem palavras que não precisam ser
ditas. Da mesma forma que ela o deixou parado em frente à porta dos fundos, sem
a chave, do lado de fora, a chuva batendo no rosto e se misturando as lágrimas.
Foi naquele dia que ele pode perceber o real sentido da palavra "blues".
Baseada
em "Standing in the doorway", de Bob Dylan (Time Out of Mind -
1997)
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