Coisas como elas são
Encontrei
a lucidez na última vez que cometi suicídio. Subi ao topo, encontrei as pessoas
certas & visualizei as coisas como elas são. Assisti ao primeiro ato do
teto da plateia alta de um teatro abandonado. Na porta dos fundos, bati trela
com Maiakovski – “ser humano foi feito pra brilhar, nunca se esqueça disso”,
ele dizia gentilmente a cada um que deixava a sala após um firme aperto de mão. Fui apresentado
a Neil Cassidy no verão de 1947. Roubamos alguns carros juntos & atravessamos
a noite americana, desfolhando o asfalto frio com a cabeça a mil por hora,
fervendo como antiácido. Peguei carona com Hesse um pouco antes, foi quando ele
me levou as estepes, contou-me fábulas sobre o oriente & bonitas histórias
de uma distante juventude. Próximo a
uma estação de trem abandonada topei com Jack London. Ele parecia um mendigo.
Na verdade, um andarilho em estado de graça. “Deus salve os vagabundos”, pensei.
Juntos, saltamos num enferrujado vagão de carga, onde nos reunimos a uma maravilhosa
trupe de saltimbancos, liderados por duas figuras messiânicas: Leadbelly &
Blind Lemmon faziam daquele cercado um palco & de nós uma enfeitiçada audiência. No canto
oposto da carroça de ferro, Noel Guarany e Woody Guthrie planejavam uma longa
viagem até o pampa argentino, onde, segundo a dupla, unificariam as Américas
com fraseados de guitarra e violão, inventando um universal idioma
folk-pajeador.
Numa placa
rudimentar, próximo à ferrovia, eu vi o rosto de Cristo estampado em um cartaz
onde dizia: “Procurado – Vivo ou Morto”. Alguns dizem que Jesus mudou de nome. Pelo
que me lembro, hoje ele se chama por Ken Parker ou Steve McQueen. Outros
juravam que o viram com o bando de Elvis. Assombrando as madrugadas com canções
de amor & roubo. Despedi-me da rapaziada & fumei o cachimbo da paz com
Leminski em uma aldeia indígena. Foi nesse dia que, sabiamente, ele apontou o
dedo em direção ao oeste dizendo “Este é o caminho das pedras”.
Logo
adiante, atravessei uma ponte seca & subi rio acima até um posto de trocas.
Lá tomei um trago com meu Tio Newton - homem de rara habilidade no cortado
etílico e dono de um invejável senso de humor. Bebemos, rimos e relembramos da velha
caminhonete Ford do meu avô. Perdia uma peça por quilômetro rodado. Ao lado de
um bolicho, havia uma modesta oficina mecânica & foi justamente lá que
reencontrei meu pai. Doutor Marcelino consertava um quase destruído Porsche
prateado de um conhecido astro de cinema, morto uns dias antes. Chega a ser
engraçado, meu velho tinha agora a cara de James Dean com 70 anos.
Na última
vez que cometi suicídio, vi meu próprio rosto enrugado rejuvenescer em frente
ao espelho & voltei aos 17 anos com a sabedoria de Ginsberg, a saúde de
Weissmuller & experiência de conhecer o outro lado antes de partir de forma
definitiva desse lugar. Concluída mais uma etapa, não existem vestígios de
descontentamento em meu semblante. Tudo ficou translúcido. Agora posso contar
os cobres & suspirar tranquilamente aliviado. Sabe aquela sensação de dever
cumprido? Estou satisfeito. Estive na fronteira, pouco antes dela desaparecer.
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