Autorretrato
06h45min.
Acordou, levantou e foi ao banheiro. Deu uma mijada, puxou a descarga, lavou as mãos e
o rosto. Olhou para o espelho. Enquanto colocava a pasta de dente na escova,
por um instante se viu com 12 anos. A idade do seu filho. Lembrou-se do garoto
que foi. Cheio de sonhos, como qualquer jovenzinho dessa idade. Ele e seus
gibis do Tex e Ken Parker. Ele e seus livros do Júlio Verne, voando de balão e escavando
a terra para chegar ao Japão, ora sonhando ser um personagem de Charles Dickens,
outrora espalhando soldados Yankees em torno do Forte-Apache - fortaleza
feita com retalhos de um capô de Chevette. Ele e seus kichutes dando bicudos nas
pedras e latas de refrigerante, o abrigo azul do colégio, a camiseta com o Pato
Donald e sua mochila com livros de sexta série. Ele e seu trabuco de taquara vitaminado com bolinhas
de cinamomo, suas bolitas coloridas, seu bodoque de borracha de soro, sua
caneca de prata que ganhou da Dinda. Ele e suas lágrimas escorrendo pelo rosto quando a Seleção Brasileira foi desclassificada na Copa da Espanha.
Onde
foi parar aquele moleque? Aonde será que se escondeu? Esse pirralho deve estar
de sacanagem comigo. Esse guri era uma verdadeira promessa de sucesso! Todos se
lembram dele... Levou elogio da professora de redação, ganhou até concurso de
crônica. Ele era o orgulho da Mamãe, o menino prodígio que recebia mimos da Vovó,
o amigo preferido de quase toda a turma daquela rua da infância.
Esfregou
os olhos de novo. Enquanto escova os dentes, sua cara de quem recém acordou
lembra os olhos azuis do falecido pai. Herdou o olhar de “peixe-morto” dele. Vinte anos se passaram. “Onde será que anda meu
velho?”, pergunta a si. Hoje ele tem quase a idade do pai quando sofreu o fatídico
infarto. O que seu coroa diria ao ver o que seu filho se tornou? Seu pai era um
exemplo de dignidade. Um homem de família. Um sujeito que vivia pelos seus. Matava
um leão por dia para colocar comida na mesa da família. Cinco bocas para
alimentar e nunca faltou nada naquela casa.
Guarda
a escova e seca o rosto na toalha. Olha no espelho e agora identifica o próprio
rosto. Não gosta do que vê. Preferia o menino de antes, ou a visão do rosto do
pai. Que tipo de homem ele se tornou? Que espécie de sangue corre nessas veias?
Ele sabe que ainda há esperanças, ainda existe um caminho a seguir. De qualquer
forma, lembra novamente do menino que foi, rememora os conselhos que um dia
ouviu do pai, junta os cacos e identifica que sim, ainda há perspectivas de que possa recuperar o melhor de si. Igual aquele garotinho que um dia cavou a
terra em busca de tesouros, ele sabe que não precisa escavar fundo para
encontrar a prata & o ouro de sua existência. Ele apenas deseja imensamente
voltar no tempo e novamente assistir filmes de faroeste ao lado do pai.
Mas...
Ele
precisa entender que essa brincadeira de ficar redesenhando seu autorretrato chegou ao fim. O espelho já trincou faz tempo. Só agora sabe: os índios nunca
foram os vilões da história. E na vida real, o mocinho nem sempre mata o facínora. Por isso, meu velho - não titubeie na hora de passar a perna na banqueta. Afinal, esse FDP já está com a corda no pescoço! E antes de colocar o capuz nesse verme, olhe bem nos olhos do sujeito... Esse criminoso não lhe lembra alguém bem familiar?
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