Marlon Brando e o Trompete

Ué! Cadê o trompete?



Texto publicado em 2004, no livro “rock & roll” (editora sCHDs)


11h30min da manhã em um café qualquer da cidade.

- Hey, cara! Me dá um crivo?
- Não tenho mais irmão. É meu último e já ta na finaleira, disse o sujeito com cara de sono, ao mesmo tempo esmagando uma carteira vazia de Free com uma das mãos. Aproveitando o minguado resíduo de fumo antecessor ao filtro, conclui depois da última baforada:

- Dormi com uma vagabunda noite passada. Ela fumou quase todos os meus cigarros, acabou levando até meu último centavo e... Ah! Deixa pra lá! Não tenho grana nem para um cafezinho! Tô aqui esperando um camarada e matando um tempo.

Apesar da roupa amassada, o pedinchão está bem vestido, entretanto, ele tem um tique impossível de passar batido: o homem coça insistentemente a sobrancelha esquerda. Sorri fungando baixinho e, depois de largar uma maleta verde retangular sobre o balcão,  dispara num tom debochado:

- Nem todas que fodem fumam, mas...
- Cumé que é?
- Nem todas que fodem fumam, mas todas que fumam fodem.

A dúvida (consternação) fica pairando no ar. Poucos segundos antecedem a curiosa pergunta do perplexo ouvinte:

- Não entendi, meu. Que você quis dizer com isso?
- Esquece, disse o homem que ostentava um permanente sorriso de velada zombaria no rosto. Ele tinha um invisível bastão de nicotina entre seus dedos amarelados. Na sequência o irreverente vagabundo leva a mão diretamente aos lábios, tragando saborosamente com os olhos fechados o seu cigarro fantasma.

Ainda sorrindo, torce o pescoço de uma forma cênica e engraçada até o lado oposto do balcão, e percebe uma jovem repleta de tatuagens pelo corpo calmamente bebendo em pé uma lata de coca-cola através de um canudo. Na mão direita ela segura uma carteira de cigarros com o celofane ainda intacto. Então, o homem aproxima-se sorrateiramente da garota, que é surpreendida com um cutucão no ombro.

- Por gentileza, qual a graça da senhorita?
- O quê?
- Perdón, Madame! O seu nome?  

Completamente entediada ela responde:

- Marlene.
- Dietrich. Hum... Marlene Dietrich!
- É. Adivinhão. Marlene Dietrich, esse é meu nome. Vê se eu tô na fila do cinema do shopping, seu... Marlon Brando de araque!


A garota agora parecia fora de si. Ainda insistente em seu mundinho paralelo, Marlon continua:

- A maioria dos atores são como gado. Não sou como eles. Só porque o diretor diz AÇÃO! Não significa que precisamos fazer alguma coisa. Entende? Na verdade sou músico. Toco trompete. Vem cá, me responde uma perguntinha: será que a senhorita não me daria um cigarro?  

O trompetista conclui seu discurso apontando para a mão direita da moça que segurava firme a carteira lacrada. Ela perde a paciência:

- Vai te fudê, palhaço! E enfia esse trompete no rabo. Se é que existe alguma coisa dentro dessa maleta de merda.

Uma certa movimentação irrompe a monotonia enquanto a garota tatuada sai porta afora do Café. Ela esbarra em dois ou três caras e sobe voando as escadarias da galeria. Mister Brando continua parado. Descaradamente toma em sua mão a lata de refrigerante deixada para trás, bebendo o líquido pelo mesmo canudo que a garota bebera. Em seguida, puxa do bolso uma foto manjada de Marlene Dietrich, aquela em que ela está fumando um cigarro. Com invejável ternura, coreografa seus movimentos como um mosqueiro, se inclina sobre a imagem e beija o retrato da famosa atriz, para logo após, abrir a maleta e guardar a fotografia dentro de uma das reentrâncias no interior do Box.

No mesmo instante repete duas vezes, em ritmos e variações diferentes:

- E a putona fuma... Fuma dentro da Caixa de Pandora! E a safada fuma para sempre dentro da Caixa de Pandora. Perdão, Louise! Perdão .

O sorriso desaparecera. Uma lágrima escorre pelo seu rosto.


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