{3} DRIVE IN { Textos inéditos } ..................................... foto: juliana pozzatti



{take 1} Descobrindo o Rock Nos Anos 80. Era Bruxaria! Ou melhor .... Era a Bruxa!!!



{1} * Era quase uma hora da manhã. Faltavam poucos minutos para começar o programa. O rádio estava ligado num volume quase inaudível. Tudo o que ele não queria era acordar os pais no quarto ao lado. Seu velho ficava extremamente mal humorado quando tinha o sono interrompido. Casas de madeira geralmente costumam denunciar os mínimos rumores de uma peça para a outra e parecem sensíveis como bebês chorões. As vezes o garoto ouvia claramente os gemidos dos pais fazendo sexo. Em uma noite daquelas também espiara pelas frestas. Ele começou a armar o circo: posicionou as caixas acústicas do seu 3 em 1 no centro da sala. Deitou entre elas com a cabeça apoiada sobre um par de pantufas da mãe. Apenas seus ouvidos separavam uma caixa da outra. Aquele jovem tinha a nítida impressão de estar numa espécie de misterioso cânion e no primeiro instante percebeu-se encurralado. Logo depois, sentiu-se deliciosamente confortável entre os rumores e envolvido por um poderoso fone de ouvidos.

{2} * Talvez para um adolescente santa-mariense dos dias de hoje seja difícil entender o quanto era duro e praticamente inacessível vasculhar o abecedário musical no início dos anos 80 aqui pela cidade. Além das limitações de se estar em uma cidade do interior e não pertencer ao círculo principal dos acontecimentos, imagine o seguinte panorama: Internet, Google, Emule, Torrent, MTV, CD, MP3, pen-drive, Revista Rolling Stone... – nada disso existia. E aquele garoto estava descobrindo o roquenrôu do seu jeito, intuitivamente. Na verdade, ele não possuía mais do que meia dúzia de LPs na prateleira. Procurava compensar a ausência de títulos com algumas fitas k-7 que gravara do acervo de amigos. Além dos colegas de aula e a gurizada da rua e arredores, como fontes de informação ele ainda tinha a abençoada Loja do Betão (na época localizada na Rua Venâncio Aires) e como último oásis, aquele redentor programa de sábado à noite no rádio. Uma outra vez, deu uma de larápio quando conseguiu afanar uma revista de Rock numa banca do centro. Decorou toda a história do Purple antes de conhecer o riff de "Smoke On The Water". Tudo pela informação. Na auto-estrada da curiosidade musical e com uma série de limitações aditivadas pela falta de total acesso a sua matéria prima, isso tudo resultaria no seguinte diagnóstico: quanto menos sabia, mais instigado ele ficava.

{3} * Mas um dos principais agentes da torrente musical na alma adolescente do kid rocker fora deflagrado em um domingo aparentemente igual a todos os outros. Naquele dia ele havia assistido a uma banda local numa apresentação na Locomotiva da Presidente. Nome do grupo: A Bruxa. Os caras pareciam deslocados no tempo e na avaliação de muitos, eles eram uma mistura de Rush com Black Sabbath ou outras coisas similares do gênero, e parafusavam todo seu ideário sonoro com letras em português um tanto bacanas e instigantes. A Bruxa tinha como formação: Renato Molina, o vocalista, que, no palco, era visualmente uma mistura de Jeff Lynne com Raul Seixas. O baixinho assemelhava-se a um jovem leão gentil com sua barba e um óculos Ray-Ban espelhado, que tomava conta do simpático rosto esguio do cantor. E como cantava! Nas quatro cordas Clóvis Miller, um gringo cabeludo que mandava ver num contrabaixo Giannini. Completando a cozinha, o homem das baquetas era conhecido como Pipoca, que – frente ao seu instrumento – fazia jus ao apelido. Além disso, o rapaz também era detentor de uma das mais gigantescas e invejadas coleções de Rock da cidade. Reza a lenda que sua discoteca continha cerca de três mil peças do mais puro sumo do gênero. Os guitarristas eram dois: um parecia um cafetão barato e tinha nome de bandido-gente-boa – Jesse; já o outro lembrava um galã ao estilo dos anos 80 – era o Guido Isaia. Mas além do desenho e da fotografia de palco, a Bruxa, nas quatro linhas, passava longe de ser um agrupamento fake... E além disso, aqueles músicos conseguiam ser autênticos, carismáticos e divertidos dentro da proposta sonora. O som tremia no peito enquanto os espectadores eram atingidos em cheio.

{4} * – “Agoraaaaa me diz a magia .... podemos dizer a você!!!!! Que o ser é o centro da........ história falida que contaram a vocês....”, entoava uma das canções. Muitos dos temas daquela tarde ainda retumbavam na cabeça do garoto, mesmo passadas várias semanas daquela apresentação.

{5} * - “1 hora, 3 minutos”, disse o locutor, “10 graus em Santa Maria”. O cara se apresentou e começou os trabalhos naquela noite de sábado com o bebum irlandês Rory Gallagher, para logo depois sacar do coldre uma do Robin Trower. Um cassete registrava tudo no seu aparelho de som. O DJ falou de uma nova banda da cidade: Era a Bruxa. Que momento! E foi ao ar justamente uma das preferidas do garoto - “Ser Astral”, que fluiu como um reconhecível chiado pelos seus ouvidos. Ele não teve dúvidas: aumentou o volume. Logo após o apresentador deu um toque aos ouvintes que o Betão tinha recebido uma nova leva de Lps importados. Entre as pedras preciosas no balcão das velhas-novidades estava De-Ja-Vú do Crosby, Stills, Nash & Young. O programa ia progredindo no melhor estilo saco-de-gatos. Free, Zeppelin, Little Feat, Dave Clark Five, Casa das Máquinas e até um Quintal de Clorofila pintou. A dupla local era composta por Dimitri e Nejandri, talentosos multi-instrumentistas que pareciam um par de Ians Andersons no palco. Uma espécie de Jethro Tull gaúcho. Ao ouvir no rádio uma das canções dos caras, lembrou que o Nossas Expressões iria acontecer na semana seguinte. O festival seria mais uma vez no estádio do Interzinho, e ano anterior os ‘Clorofila’ haviam realizado um grande show por lá. Foi uma noite memorável.

{6} * Voltando ao programa de rádio, a última cartada da noite só poderia ser um Stones – o ás de copas ou a música perfeita pra pedir a conta pro garçom: Apagando as luzes e recolhendo os copos com “Midnight Rambler”. A cabeça do menino perseguia os passos do personagem dos Glimmer Twins, assim como a gaita de Jagger insistia em duelar com o apito do trem das duas que cruzava a Sete de Setembro. O programa termina. Ele volta o K-7 e checa o início da gravação daquela noite: parece ok. Logo depois, põe as caixas de som no lugar e encerra as operações. Pega o violão na varanda e vai até a cozinha. Lá ele toca no velho instrumento um pedacinho de uma canção qualquer. Repousa um de seus pés sobre o gato da família enquanto acaricia as cordas e vai pensando na posição geográfica que o seu corpo ocupa no espaço. Ele não se sente adequado ou pertencente ao mundo e principalmente à época em que está vivendo. A música o faz sentir-se como... outra pessoa, vivendo uma nova vida! Ele está muito longe dali...

{7} * Será que o rock tem uma nacionalidade específica? Nasceu blueseiro e negro no Mississipi , teve a oportunidade de empalidecer com Elvis, tornar-se popular com os Beatles, cair na gandaia com os Stones, ganhar um cérebro com Dylan, vestir roupas tupiniquins com os Mutantes e Raul, estar nas ruas com o punk, fundir forças com o metal pesado e sem avisar a ninguém, num belo dia vendeu a alma ao diabo. Foi julgado: durante a leitura da sentença o criador colocou o dedo na cara do Rock, dizendo: - "Chega!". O Rock respondeu: "É o livre arbítrio, Man!!".Foi condenado. Chegou ao inferno, foi currado no calabouço, cuspiu na cara do capeta, comandou a rebelião, abandonou o cárcere, saqueou o palácio do rei, beijou a mão do papa, depôs o governo, assumiu suas contradições, comeu todas as mulheres - para finalmente – passear de forma triunfal pela Presidente com sotaque santa-mariense naquela tarde de domingo. - "Seria Molina o novo Messias?", muitos perguntaram.


{8} * O rock gosta de quebrar as regras e não passa de um namorador incorrigível que flerta com o futuro mostrando uma crônica infidelidade com todas as suas origens. Às vezes se arrepende e volta pra casa como filho pródigo. O garoto conclui que o rock não tem pai nem mãe e também nunca teve endereço certo. E nesse mundo sem fronteiras, ele próprio se percebe como o Doutor Rock and Roll. Basta um acorde e a cozinha vira estúdio – um Abbey Road santa-mariense. E quem duvida que a cidade universitária ainda possa conquistar o mundo com sua música? Ou talvez isso nunca aconteça, o que é bem provável. Um novo Napoleão ainda não mandou notícias. E esse mesmo mundinho fica ainda menor quando a música fala sua língua, porque não importam quais guetos, vilarejos ou metrópoles o Rock and Roll ainda percorra. Na verdade, eu ele foi visto ainda ontem fumando um 'beque' pelas calçadas de Santa Maria, passeando na pele de um super-vagabundo que continua a instigar a curiosidade alheia

{Grings} (texto revisado em 25.04.08 / 02:51hs)

Comentários

  1. Uma espécie de aula inugural, com todos os seus mistérios, inquietudes e fascinações...

    ResponderExcluir
  2. Que tempo difícil, porém fascinante..

    Incrível a sensibilidade da narrativa. De tão envolvente parece pura ficção, mas vez ou outra confirma sua veracidade com personagens e cenas reais.

    Muito bom. Saudade do que não vi, ouvi, nem vivi.

    Vida longa ao blog e a inspiração de Marcio Grings.

    ResponderExcluir
  3. Preciso dizer que gostei???;) O meu blog quando crescer quer ser que nem o teu! Bjus da Bia

    ResponderExcluir
  4. When I was younger, so much younger than today
    I never needed anybody's help in any way.
    But now these days are gone, I'm not so self assured,
    Now I find I've changed my mind and opened up the doors.
    And in the end,
    The love you take
    Is equal to
    The love you make.
    Love you. Love you. Love you. Love you.
    Love you. Love you. Love you. Love you.
    Love you. Love you. Love you. Love you.
    Love you. Love you. Love you. Love you.
    Love you. Love you. Love you. Love you.
    Love you. Love you. Love you. Love you.

    WINSTON & JAMES

    ResponderExcluir

Postar um comentário