Admirada por Mick Jagger, Madonna e Pablo Neruda, biografia de Tina Modotti é uma obra de arte embalada no formato de HQ

| Divulgação: Trem Fantasma |
| Por Márcio Grings |

Arrebatamento! Ao me deparar com a obra do quadrinista italiano Ivo Milazzo vivo a pleno esse sentimento. Ken Parker, meu personagem favorito dos quadrinhos, é uma criação vinda direto de sua pena. Poucos ilustradores e desenhistas trazem tanta poesia em traços tão precisos. Eu visualizo os quadrinhos e graphic novels como uma expressão artística tridimensional, impactante como ver um filme no cinema. Assim são as figuras, paisagens e descrições visuais de Milazzo, sempre prontas para saltarem do papel e desfilarem livres como corpos celestes. Nessa concepção peculiar, frente àquilo que conceituo como um modelo padrão de HQs, aos 77 anos, esse artista produtivo continua nos entregando o máximo de satisfação. É justamente esse combo de sentimentos que sinto ao apreciar  “Tina Modotti – Reflexos de Uma Vida”, lançado no Brasil por uma das melhores editoras de quadrinhos deste país, a Trem Fantasma.  

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Divulgação Trem Fantasma
Atriz, modelo, fotógrafa, militante comunista e ícone feminista, a italiana Tina Modotti (1896-1942) se transformou em uma interessante (e muitas vezes esquecida) personalidade do século XX. Ainda muito jovem, migrou para os Estados Unidos, onde morou em San Francisco e Los Angeles. Nas décadas de 1910/20, trabalhou como modelo, estilista e atriz, chegando a atuar no teatro e em Hollywood. Decide se mudar para o México ainda na década de 1920, e por lá se integra aos artistas locais onde produz durante sete anos, entre 1923 e 1930, cerca de 400 fotografias. Inicialmente fez retratos de personalidades da sociedade mexicana, para logo depois voltar as suas lentes para flores, ensaios arquitetônicos e, principalmente, para a dura realidade dos camponeses. Se envolveu — amorosa e artisticamente — com os fotógrafos "Robo" Richey e Edward Weston, trabalhando como modelo para ambos.  

A opção pelas causas revolucionárias a incitou a se filiar ao Partido Comunista. Ao longo dos anos, se envolveu — amorosa e ideologicamente — com três dos mais importantes militantes políticos da época: Julio Antonio Mella, Xavier Guerrero e Vittorio Vidali. 

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À frente do seu tempo, mas ainda desconhecida por muitos, Tina Modotti  foi resgatada pelos movimentos feministas dos anos 1970 e, anos depois, por escritores e biógrafos como Margareth Hooks, autora do livro “Tina Modotti - Fotógrafa e  Revolucionária" (1997), lançado no Brasil pela editora José Olympio. Ainda nos anos 1990, Mick Jagger comprou os direitos para transpor a biografia da artista italiana para o cinema. Na época, Madonna foi cotada como protagonista. Sabe-se que a cantora coleciona fotografias e já patrocinou diversas exposições com fotos de Modotti. Se até hoje o projeto de filme não saiu do papel, só Ivo Milazzo pode nos salvar.  

Uma curiosidade: no início deste século, muitos viram uma breve aparição de Tina Modotti (Ashley Judd) no filme “Frida” (2002). Como personagem, ela protagoniza uma dança sedutora com par da artista mexicana. A cena ficciona um episódio real: Diego e Frida casaram-se na casa de Modotti. 

Comecei esse texto falando da proximidade das graphic novels com o cinema porque essa ligação direta solta chispas na adaptação biográfica feita por Ivo Milazzo (com colaboração de Anna Rita Graziano, que trabalhou junto ao autor no roteiro e pesquisa). A biografia em quadrinhos — ou fumetti, como os italianos denominam a modalidade — faz inteligentes transposições — oscila entre vais e vens temporais; balança entre o preto & branco e o tecnicolor; decalca fotografias reais e faz colagens; promove licenças poéticas e traz precisos relatos biográficos, além de um riquíssimo conteúdo histórico. Quem nos conta tudo é a própria Tina, em conversas junto a uma figura misteriosa e responsável por uma das grandes sacadas da obra (sem spoiler). A tradução para o português é Julio Sheneider, com prefácio traduzido por Silvio Raimundo, que também é o resposável pela entrevista com o quadrinista italiano que preenche as seis páginas finais da edição da Trem Fantasma.    

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No prefácio para a edição brasileira, Milazzo nos diz:

Tornar-se uma mulher bonita, com uma sensualidade inata, talento artístico e compaixão pelos outros foram recursos instintivos do inconsciente que, combinados com uma curiosidade incessante de saber, guiavam sua relação com um mundo complicado em perenes conflitos ideológicos, sociais e de gênero”. 

Sim, Tina Modotti até hoje alimenta o imaginário de muitos — Mick, Madonna, Milazzo, eu e você que agora lê essas linhas. Pablo Neruda escreveu um poema dedicado a ela. Em um dos trechos, o poeta chileno diz: 

"Vou levar você até minha pátria para que não a toquem/ Minha pátria de neve, para que sua pureza/ Não seja alcançada pelo assassino, pelo chacal, pelo vendido/ Lá você estará tranquila".

A verdadeira Tina Modotti
O traço marcante que ela deixou durante sua passagem pelo planeta é a  prova de que a finitude da vida é incapaz de deter a grandeza da arte. E, se hoje o mundo está repleto de Tinas, sua transgressão está imortalizada em milhares de outras mulheres. 

Tina Modotti – Reflexos de Uma Vida" não apenas é um dos melhores quadrinhos de arte lançados no país em 2024, trata-se de alta literatura, feita diretamente para leitores em busca de uma boa história, independente do formato em que essa história é contada.   

Veja no vídeo abaixo imagens de uma exposição com fotos de Tina Modotti realizado em 2021 no Museo delle Culture (Museu das Culturas), ou MUDEC, em Milão, na Itália. E, logo abaixo, um poema escrito pela artista italiana, publicada junto ao epílogo da edição brasileira.

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