Review: Little Feat "Sam's Place" (2024)

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| Por Márcio Grings |

Já disse isso outras vezes e reafirmo: o Little Feat é uma das minhas 'causas perdidas' favoritas. Causa perdida pelo fato do grupo norte-americano ser frequentemente esquecido na literatura musical dos anos 1970, mesmo que tenha sido uma das bandas mais originais do seu tempo. A banda criada em 1969 pelo cantor, guitarrista e compositor Lowell George, ganhou reconhecimento de crítica e público em álbuns como "Sailing Shoes" (1972), "Dixie Chicken" (1973) e "Feats Don't Fail Me Now" (1975), onde temos uma mistura de blues, country, soul e funk. Além de George, Paul Barrere (voz e guitarra), Bill Payne (voz e teclados), Kenny Gradney (baixo), Richie Hayward (bateria e voz de apoio) e Sam Clayton (voz e percussão), são os membros da formação clássica. George bateu as botas em 29 de junho de 1979, encontrado morto em um quarto de hotel, na cidade de Arlington, Virginia, aos 34 anos. 

Recentemente foi lançado um novo álbum em sua homenagem | ouça Long Distance Love: A Sweet Relief Tribute for Lowell George 

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Após uma pausa, sete anos passados da morte de seu criador, o grupo seguiu com os remanescentes, trabalhando incialmente com Craig Fuller (voz e guitarra), e depois com Shaun Murphy (voz), além da colaboração permanente de Fred Tackett (guitarra). Do material gravado pós a era Lowell George, destaque para "Let It Roll" (1987) e, principalmente para "Kickin' At the Barn" (2003), o melhor disco do Little Feat neste século. Outras perdas na formação se deram — respectivamente — em 2009 e 2019, com as morte de Richie Hayward e Paul Barrere, ambos com guerras perdidas para o câncer. 

Será que faz sentido um grupo continuar adiante após tantas baixas significativas? "Sam's Place" é a prova de que eles ainda possuem energia e talento para continuar na pista. Dos velhos tempos, Sam Clayton (78), Bill Payne (75), Kenny Gradney (74), ) e Fred Tackett (74) traduzem a legitimidade do DNA clássico do grupo. No lugar de Hayward, nas baquetas temos agora Tony Leone (53), quem tem no currículo trabalhos assinados com Levon Helm (The Band) e Phil Lesh (Grateful Dead). Já na guitarra e voz, Scott Sharrard (47), parceiro e diretor musical de Gregg Allman, falecido em 2017, consegue ser uma voz legítima nesse time reformado. Duas das canções originais de Scott foram tocadas pela Gregg Allman Band, "Endless Road" e "Love Like Kerosene", provas de seu calibre como compositor. Ainda com Gregg, Sharrard co-escreveu "My Only True Friend", a primeira faixa do álbum póstumo do fundador da Allman Brothers Band, "Southern Blood" (2017).

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Lançado no último dia 17, "Sam's Place" coloca na linha de frente o percussionista Sam Clayton (irmão da cantora Merry Clayton) — a voz feminina em "Gimme Shelter", clássico dos Rolling Stones. Trata-se do primeiro álbum de estúdio em 12 anos e o primeiro de inéditas em 21 anos, trabalho que promove uma homenagem ao blues com o Sam Clayton no centro como vocalista:

Estou muito feliz porque nunca esperei algo assim. Quer dizer, eu queria, mas simplesmente não esperava que isso se concretizasse. Foi uma longa espera, mas é gratificante”, disse Sam em comunicado à imprensa. 

Destaque para a participação especial de Michael 'Bull' LoBoe (harmônica), Art Edmaiston (saxofone), Mark Franklin (trompete) e de Bonnie Raitt (voz e guitarra). O trabalho foi gravado em Memphis, TN, no Sam's Phillips Studio e produzido por Little Feat e Charles A. Martinez.

Com nove faixas gravadas no velho e bom esquema 'tudo ao vivo em estúdio', exceto uma gravação de um tema registrado num show, o disco é repleto de momentos interesantes. A abertura, com a ótima “Milkman”, tema inédito co-escrito por Sam Clayton, Scott Sharrard e Fred Tackett, traz a voz rouca de Sam, uma marca de qualidade que você ouvirá permanentemente durante 36 minutos. “You'll Be Mine” (Willie Dixon) gravada por Howlin' Wolf em 1961, traduz essa crueza, guturalidade e emotividade encarnada por Sam, o que o faz soar com proximidade ao Lobo original.

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Outros clássicos são relidos com selo de qualidade — “Long Distance Call” (Muddy Waters), essa com Bonnie Raitt cantando em dueto com Clayton; “Last Night” (Little Walter), com destaque para a harmônica de LoBoe; duas de Willie Dixon “Don't Go No Further” e “Mellow Down Easy” + “Can't Be Satisfied” (Muddy Waters), traduzem fidelidade ao gênero, ao mesmo tempo que amplificam os riffs de slide e teclados de Payne, digitais permanentes do grupo.  A deliciosa "Why People Like That" (Bobby Charles), conhecida por muitos no álbum "The Muddy Waters Woodstock Album", LP gravado com membros d'The Band e da Paul Butterfield Band, é uma das boas escolhas de repertório de "Sam's Place" (e uma das minhas preferidas). O Little Feat a toca de uma forma divertida e irreverente, numa mistura de ragtime com southern boogie. A versão final do álbum, "Got My Mojo Working” (Preston Foster), gravada durante uma apresentação do Little Feat no Boulder Theatre em Boulder, no Colorado (2022), apenas traduz o clima de festividade buscado pelo grupo.  

Se você não conhece o Little Feat, "Sam's Place" pode ser apenas a tampa de um caldeirão repleto de aromas. Mas, quando você de debruçar sobre esse caldo e der uma cafungada de leve no bafo que vaza dessa panela, tenho certeza: você vai querer ir ainda mais fundo e descobrir todos os sabores dessa banda incrível.   

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