50 anos de "Ooh La La", 4º e último álbum de estúdio do Faces

| Divulgação. Arte: Jim Ladwig |
| Por Márcio Grings |

Surgido em 1965, o Small Faces estava enquadrado como um dos difusores da cultura mod, forjando seu som em infiltrações com o blues, rhythm & blues e a música soul. Fizeram relativo sucesso, sempre com a liderança do vocalista/ guitarrista Steve Marriot. Após dois álbuns, incluindo o ótimo “Nut Ogden Lomge Flake” (1968), Marriot se desilude com o Small Faces, aproveita os conflitos entre eles, salta fora da carroça e monta o Humble Pie com Peter Frampton. Assim, Ronnie Lane (baixo), Ian McLagan (teclados) e Kenny Jones (bateria) herdam uma banda sem guitarra e um vocal líder. Até que,  o sempre esperto e disponível Ronnie Wood, na época integrante do Jeff Beck Group, mas já de saída após uma turnê com o sempre intempestivo Jeff, não apenas se convida para fazer parte da banda, mais ainda convence os remanescentes a aceitarem seu colega de Jeff Beck Group, Rod Stewart, forjando aquela que ficou conhecida como formação clássica do Faces.  

Veja a live dos 50 anos de "Ooh La La" no Pitadas do Sal.


“Quando estávamos no palco era difícil de superar. Afora alguns times de futebol, acho que não havia camaradagem como a nossa”, disse Rod Stewart em sua autobiografia. De fato, o primeiro disco, “First Step”, está longe de ser uma maravilha, mas quando a banda o tocava ao vivo, tudo soava melhor, bem amarrado, havia uma química rara entre eles. Ainda segundo Rod, a essência do som ao vivo do Faces nunca foi captada em estúdio nos quatro álbuns gravados pela banda. De todo o modo, “Long Player” (1971) já elevou a moral frente os críticos, que consideram o disco seguinte, “A Nod is a Good as a Wink... to a Blind Horse” (1971) o melhor do Faces. “Ooh La La” foi a despedida de estúdio, um LP que ganhou importância e reconhecimento com o passar dos anos. Numa época em que o rock se levava muito a sério, o Faces era puro deboche e libertinagem. Foram a primeira banda a chutar bolas de futebol para o público e talvez a única a colocar um garçom na folha de pagamento para servir drinques no palco durante os shows. A fama de bebuns eméritos se propagou, e não era apenas um jogo de cena. O escritório do Faces era sempre o pub mais próximo. 

The Faces: Ronnie Lane, Ian McLagan, Rod Stewart, Ronnie Wood e Kenny Jones. 
Tocavam sem setlist, geralmente abrindo com “Memphis Tennessee” de Chuck Berry e, intuitivamente, escolhendo as canções noite após noite, fazendo de cada show uma experiência única.  Ronnie Lane gostava de atuar como Mestre de Cerimônias: “Desculpe o atraso pessoal, o secador de cabelos do Rod estragou”, dizia. "Nosso ar endiabrado era característica sempre presente", lembra Ronnie Wood em sua autobiografia. Reducionista e prático, Woody levava apenas uma guitarra nas turnês, para desespero de seus colegas de banda. Quando ele necessitava ajustar a afinação durante as apresentações, isso gerava longos intervalos entre uma música e outra. Enquanto o guitarrista aprumava seu instrumento, Rod desenvolvia a invejável habilidade de entreter o público com piadas cabeludas. Ainda durante os shows, com frequência o vocalista convidava o público a visita-los após o te´rmino das apresentações, uma espécie de segundo bis, dizendo o hotel e o andar onde estavam hospedados. A reprise acontecia na piscina, com frequentes cenas de nudez e excessos. Como resultado foram banidos de toda a rede Holiday Inn ao longo das onze turnês que fizeram nos Estados Unidos. Para despistar, geralmente faziam reservas em nome do Grateful Dead ou Fleetwood Mac.   

Em 1973, logo após gravar “Ooh La La”, Ronnie Lane ficou magoado com Rod Stewart pelas declarações que ele deu a revista britânica Melody Maker, praticamente acabando com a reputação artística de "Ooh La La", um tiro no pé que Lane nunca perdoou, sendo um dos motivos que o fez sair da banda, sendo substituído por Tetsu Yamauchi, o baixista japonês que tocou no último álbum do Free. Apesar disso, no mês seguinte ao seu lançamento, o LP alcançou o primeiro lugar na parada de álbuns do Reino Unido, sendo a único dos discos do grupo a figurar nessa posição. O Faces gravou mais dois singles, fez alguns show, mas eles já estavam na rapa do tacho. Rod, com uma carreira solo de sucesso na ativa – com cinco álbuns entre 1970 e 1975, autor de sucessos como “Maggie Mae” –, abandonou o Faces logo depois que Ronnie Wood aceitou o convite para ser o substituto de Mick Taylor nos Stones. E assim um dos grupo mais sacanas do rock dava seu adeus, mas continua eterno no coração de milhões de fãs, um séquito que só aumentou, mesmo com a completa inatividade da banda após seu término bem no meio dos anos 1970.  

Contracapa do LP. Arte: Jim Ladwig
A interjeição “oh là là” é usada para expressar uma reação de surpresa, felicidade ou decepção. O quarto e último álbum da banda inglesa foi lançado em março de 1973. No final de 1972, Rod Stewart já era um astro em ascensão no cenário do rock, e muitos consideravam o Faces apenas como sua banda de apoio. Durante as sessões de "Ooh La La" a sensação de que Rod estava com a cabeça nas nuvens, tomou conta do núcleo da banda. Tanto que Rod não apareceu nas duas primeiras semanas de gravação. Essa ausência pode ser percebida em três faixas do álbum, onde sua participação inexiste. Nesse caso, fulo da vida, Ronnie Lane assume grande parte do protagonismo do disco, seja como compositor e até mesmo como cantor. 

"Ooh La La" é um álbum padrão Faces: as canções soam como se eles tivessem escrito, arranjado, gravado e produzido todo o disco em um pub, contando piadas, namorando as garçonetes e virando canecas de cerveja. É um som a lá Stones, só que mais sujo, mais improvisado e mais tô nem aí. Gravado basicamente com guitarras, violões, teclados e bateria, sem elementos sofisticados na produção A direção musical é do mestre Glyn Johns (Stones, Beatles, The Who). 

A arte da capa é assinada por Jim Ladwig, inspirada numa fotografia do ator e cantor italiano Ettore Petrollini, que inclusive se apresentou muitas vezes no Brasil durante nos anos 1910. O criador da capa, um colecionador de "objetos nostálgicos de papel", encontrou um anúncio de pasta de dente dos anos 1930 com uma foto do astro do rádio Fred Allen que podia ser manipulado para que os olhos e a boca se movessem quando uma aba fosse puxada. Funcionou. De acordo com o temática francesa do título, Ladwig ainda desenhou na parte interna os Faces cobiçando uma garota dançando cancan. Desenhos dos integrantes baseados em fotos originais ilustram a contracapa.   

Parte interna da capa dupla. Arte: Jim Ladwig
Lado A

SILICONE GROWN

Música de Rod Stewart e Ronnie Wood, "Silicone Grown" tem uma letra sacana a lá Faces. O riff de Wood e voz de Rod são rolos compressores que nos atropelam logo de início. A condução da guitarra é poderosa, o piano de Ian McLagan salta pelas beiradas e Kenny Jones toca como se estivesse lutando por um prato de comida (ou por um pint de cerveja). O clima de espontaneidade e improviso nos toma de assalto o tempo todo. Algo parece desorganizado, mas há atrevimento de sobra, é como se eles mal tivesse ensaiado e resolvessem gravar de primeiras, in first take! Como de fato deve ter sido. É uma canção Faces signature.  

CINDY INCODENTALLY

"Cindy Incidentally" tem a melodia descaradamente roubada de "I Don't Believe You" de Bob Dylan. Ironicamente é uma das canções mais lembradas do álbum. Rod Stewart sempre buscou inspiração nas composições de Dylan. Anos depois, "Forever Young", de “Out of Order” (1988), foi também inspirada num clássico homônimo de Bob Dylan, gravado em 1974. Há semelhanças indissociáveis, tanto que Dylan ganhou uma legítima coautoria, que já poderia ter acontecido em "Cindy Incidentally", creditada apenas para Ian McLagan, Rod Stewart e Ronnie Wood. Apesar dessa 'coincidência', o disco começa muito bem, obrigado! Como diria Pablo Picasso: os medíocres copiam, os gênios roubam.   

FLAGS AND BANNERS

Escrita por Ronnie Lane e Rod Stewart, Lane faz sua estreia como cantor solo no álbum. "Flags And Banners" é curta e eficiente, passa seu recado em apenas dois minutos. Meio The Byrds fase country rock, culpa do banjo. É uma música com o DNA do baixista do Faces, que após sua saída da banda, faria outras composições ao estilo folk rock tão boas quanto essa. 

MY FAULT

"My Fault" é feita da sujeira clássica do Faces e contém os versos que resumem praticamente toda a carreira do Faces: "Se eu tiver que cair de cabeça todas as noites da semana/ Vai ser minha culpa (e de mais ninguém). McLagan, Stewart e Wood a escreveram. Rod e Woody cantam grande parte dela em duo. A guitarra de Ronnie é o motor de propulsão que faz tudo pulsar. Essa bagagem de ser o único guitarrista na banda, de segurar todas as pontas, seria a melhor escola para prepará-lo como novo integrante dos Stones, tornando-se o comparsa perfeito para Keith Richards, seu eterno parceiro no crime.    

BORSTAL BOYS

O lado A acaba com mais uma canção de McLagan, Stewart e Wood, mais uma canção no estilo bagunçado e tudo ao mesmo tempo agora do Faces. A buzina pedindo passagem soa como uma aviso: saia da frente, você pode ser atropelado! "Borstal Boys" soa garageira, suja, com Rod dando a sensação que gagueja no refrão, esquecendo as palavras. A química do grupo fervilha, uma fraude do rock que todos nós adoramos movida pela autêntica crueza e vibração do Faces. 

Lado B

FLY IN THE OINTMENT

O tema instrumental pode soar como uma estranho tapa buracos abrindo o Lado B. Temos aqui a única participação especial do disco, a do percussionista ganês Neemoi Acquaye. Mais uma vez a ambiência de jam e liberdade musical, de improviso e de zoeira nos invade como um sentimento da mais pura diversão. Ian McLagan solta chispas nas teclas, e há um toque blues de Ronnie Wood, primeiro no slide, mais agressivo, e depois num outro clima nos segundos finais, já no fade out, dando a impressão que eles poderiam seguir nesse tranco por horas, com um monte de peças fora do lugar, cada um seguindo para um lugar diferente. É o único momento de baixa no álbum.   

IF I'M ON THE LATE SIDE 

Composta por Lane e Stewart, a balada "If I'm On the Late Side" oferece um delicioso refresco depois do início barulhento no Lado B. Vende ares de uma demo, meio incompleta e perfeita com todas as suas imperfeições. Violão e guitarra na manhã, o baixo de Ronnie é o instrumento solista, sombreando a voz de Rod, o teclado faz toda a cama de fundo, e a bateria apenas espalha a poeira, tiquetaqueando como um relógio suíço. e sem sentar a mão. Uma delícia, se alguém disser o contrário, principalmente se for um crítico de rock: interne-o!     

GLAD AND SORRY 

Cantada por Ronnie Lane, Ronnie Wood e Ian McLagan, anos depois "Glad and Sorry" apareceria na trilha-sonora do ótimo "Profissão de Risco"(2001), filme com Johhny Depp. O piano de Ian é o que puxa o som. É certamente um dos melhores momentos do álbum e daquilo que o Faces poderia nos oferecer de melhor, além de ser um demonstração de que mesmo sem Rod Stewart o grupo ainda conseguia se virar muito bem, obrigado!  Ronnie Wood arrasa no solo de slide. 

JUST ANOTHER HONKY

Gosto do falso início, da guitarra surgindo como se fossemos levar um tapa nos peitos. Mas é apenas uma carícia. O destaque aqui novamente é o piano de Ian McLagan, autor de um dos maiores riffs de piano no meu imaginário. Ainda há luz de sobra na interpretação de Rod cantando uma música escrita por Lane, e um tema que cairia muito bem no seu repertório solo. Coloque-a para tocar no meu funeral, é uma das minhas baladas preferidas não só de "Ooh La La" ou do Faces, mas de todo o rock feito nos anos 1970. 

OOH LA LA

A voz principal é de Ronnie Wood, algo incomum na discografia da banda. Antes dele, Stewart e Lane gravaram versões cantando a música, mas não ficaram satisfeitos com o resultado. Glyn Johns então sugeriu que Wood tentasse... e deu liga. Ela é acústica, leve, com uma letra que nos faz pensar, escrita por Ronnie Lane, que nos descreve um diálogo entre um avô e o neto: 

"Eu ria do que o coitado do meu avô dizia/ Eu achava que ele era um homem amargo quando falava das mulheres/ Elas te prendem/ Te usam antes que você perceba/ Porque o amor é cego e você bonzinho demais/ Não deixe transparecer/ Queria que eu soubesse o que sei agora quando eu era mais jovem.

Quero os lábios/ Mas só consigo o rosto/ Me pergunto onde estou/ Se quero mais ela logo adormece/ E me deixa na companhia das estrelas/ Meu pobre neto/ Não há nada que eu possa dizer/ Feito eu, você vai ter que aprender da forma mais difícil/ Ooh la la!"

Em "Daisy Jones & The Six", nova série da Amazon Prime, baseada no livro de Taylor Jenkins Reid, aos 39 minutos do quarto episódio, durante uma festa na casa de Billy (Sam Claflin) e Camila (Camila Morrone), os presentes são surpreendidos por um apagão. E sem luz, no escuro iluminado por velas, Karen (Suki Waterhouse) senta ao piano e não tira da cartola uma música qualquer, é "Ooh La La" do Faces que ela toca e começa a cantar. Assim, promove um momento catártico nessa reunião de amigos em Laurel Canyon, pois logo Eddie (Josh Whitehouse) pega o violão e se junta a ela, com Daisy, depois Billy, cantando o clássico do Faces e todos os presentes se juntando a eles no refrão. "Ooh La La" ainda está no final do filme "Três é demais" (1998) de Wes Anderson, e também na comédia "Totalmente sem rumo" (2004), entre outros filmes. A Mitsubishi usou "Ooh La La" em comerciais para seu Galant 2001. "Ooh La La" é uma das músicas mais conhecidas do grupo, e indissociável da figura de Ronnie Wood, e se tornou um dos maiores clássicos do rock em todos os tempos. É pouco ou quer mais? 

..............

E aí alguém um dia te contou que "Ooh La La", o álbum, não é grande coisa. Internem o maldito. Clássico para dormir abraçado todas as noites. É O QUE EU FAÇO!

Relembro aqui a cena final de "Três é demais".     


Comentários