35 anos de "A Momentary Lapse of Reason", do Pink Floyd

|Foto: Robert Dowling. Divulgação PF/ Sony|

|Por Márcio Grings|

Quando comecei a ouvir música de uma forma mais profunda, no final de 1984, tive a sorte do Pink Floyd ser uma das primeiras bandas a cair na minha rede. "The Wall" (1979) foi a porta de entrada, "The Final Cut" (1983), o último com Roger Waters (que anunciou sua saída em 1985, dizendo que o PF tinha acabado), veio depois. Naqueles dias, os trabalhos solo de David Gilmour — "About Face" (1984) e " The Pros and Cons of Hitch Hiking" (1984), de Waters, meio que supriam a falta de material novo no Floyd, que naquele momento vivia um rumoroso imbróglio. Afinal: a banda realmente acabara? Após algumas demos destinadas para um possível terceiro álbum solo de Gilmour, Stephen Ralbovsky, um executivo da CBS, convenceu o guitarrista e Nick Mason a seguir adiante com detentores do nome. Waters discordava veementemente deles. O Outro envolvido, Richard Wright, estava impedido contratualmente de assumir o seu posto desde 1979, quando foi despedido pelo então líder da banda, mas poderia figurar como músico de estúdio, um artista contratado para as sessões, como de fato atuou. Ele nem figura na imagem da parte interna da capa, lá estão David e Nick, a primeira vez que integrantes figuram numa capa desde "Meddle" (1971).

Entre dúvidas, disputas nos tribunais e a incredulidade dos fãs, quando "A Momentary Lapse of Reason" foi anunciado em setembro de 1987, óbvio que uma comoção misturada a curiosidade se instaurou no mundo do rock. Será que os remanescentes conseguiriam resgatar a mágica do Pink Floyd sem o principal criador — o ex-líder, mentor intelectual de "The Dark Side of the Moon" (1973) e "Animals" (1977)? "Roger havia carregado a banda nos ombros por dez anos", disse Nick Mason em sua biografia, "Inside Out" (2004). Não havia dúvida da qualidade dos vocais e da músicas, mas sem as letras de Waters havia um buraco enorme e difícil de ser preenchido, principalmente devido a aparente inabilidade em escrever novas canções com conteúdo à altura dos grandes momentos do grupo.    

A resposta, hoje, todos sabemos. Sim, eles conseguiram. O primeiro movimento que auxiliou esse resgate está na escolha do produtor, o canadense Bob Ezrin, responsável pela direção musical em "The Wall". Gilmour assumiu a liderança, convocando um exército de 15 músicos para reprisar a massa sonora do Floyd. Com isso, transformou o novo disco num renascimento. Gravado em sete meses, o "The Momentary Lapse of Reason" teve como estúdio a casa barco de David (além de outros locais), uma embarcação que ainda circula pelo Rio Tâmisa. Ezrin chamou o disco de "uma nova versão de um álbum do Pink Floyd". Waters, que continuava lavando a roupa suja em publico, disse à Rolling Stone que tudo não passava de uma "falsificação inteligente". Contudo, o ex-integrante, que apenas três meses antes fracassara rotundamente nas paradas com o confuso "Radio Kaos", certamente se deu conta que essa guerra já estava perdida por ele. O público ainda queria o Pink Floyd, e muitos desses fãs nem perceberam (ou reclamaram) sua ausência.

Assista a live no Pitadas do Sal.

O sucesso do Pink Floyd renascido começa pela capa, a mágica estava toda lá. Inspirada na letra de "Yet Another Movie", a equipe de criação de Storm Thorgerson utilizou 700 camas de hospital, dispondo-as alinhadas na praia de Saunton Sands (que já havia sido utilizada nas gravações do filme The Wall), na costa de North Devon. Eles viajaram 3h de Londres até Devon para armar o cenário na areia. Durante duas semanas eles organizaram as camas para o clique, e quando tudo ficou pronto —  a chuva atrasou  o início das sessões. O resultado está na capa, um triunfo floydiano que figura entre os momentos mais célebres de Storm Thorgenson. 

Divulgação PF/ Sony

Apesar de ser um álbum cuidadoso, controlado, com pouquíssimos riscos assumidos, "The Momentary Lapse of Reason" colocou duas músicas nas paradas nos dois lados do Atlântico — "Learnig to Fly" e "On the Turning Away", ambas ainda com versões em videoclipe, alinhadas para figurarem na MTV, e com Anthony Moore (Slappy Happy) como letrista, isso após várias tentativas e erros de David Gilmour em encontrar parceiros de pena para a criação das letras. À sombra de Waters o sufocava nesse quesito. Ouvindo o álbum hoje, com o distanciamento de 35 anos, "A Momentary Lapse of Reason" ainda soa como um trabalho vitorioso, por mais que haja poucos rastros da genialidade dos melhores momentos do Pink Floyd, mas a sonoridade está lá, como um truque de mágica bem feito. Na banda, entre os convidados nomes como o baixista Tony Levin (King Crimson, Peter Gabriel); os bateristas Jim Keltner (Bob Dylan, George Harrison) e Carmine Appice (Cactus, Vanilla Fudge), deram conta do recado pelo fato de Nick Mason estar um tanto enferrujado após quatro anos sem tocar: "era como emprestar seu carro para Michael Schumacher", disse um desolado Mason. Ainda colaboraram Bill Payne (Little Feat); Michael Landau (Joni Mitchell Michael Jackson) e John Heliwell (Supertramp), um supertime utilizado assertivamente em momentos oportunos e escolhidos a dedo para resinificar uma das sonoridades mais celebradas do rock progressivo.  

Lado A

SIGNS OF LIFE

Tudo começa com o som dos remos (ou da movimentação) de Langley Iddins — barqueiro do barco/estúdio de Gilmour — avançando sob a água dos charcos de Grantchester Meadows, em Cambridge. Essa climática logo ganha a adição dos teclados e programações funestas de David Gilmour, Rick Wright, Bob Ezrin e Jon Carin. Então sabemos: o mood progressivo é o cartão de visitas de "A Momentary Lapse of Reason". "Signs of Life", uma peça instrumental quebrada pela voz de Nick Mason, que declama um poema.  

"Quando a visão de mundo pelos olhos de uma criança evanesce, nada a substituiu", diz um trecho. 

A música tem 4min30, mas só nos dois minutos finais Gilmour surge com sua guitarra. Então, numa linha de montagem floydiana ao estilo de "Shine On You Crazy Diamond" (no quesito a ambiência e construção de um espaço musical característico), fica claro que estamos iniciando nossa viagem numa nave ao qual já embarcamos muitas vezes. E essa jornada quase sempre foi prazerosa...   

LEARNING TO FLY

Jon Carin tinha 20 anos quando mostrou para Gilmour o primeiro esboço do que seria "Learning to Fly". Na época, em 1986, ele ainda era integrante da banda de Brian Ferry. Carin e Gilmour haviam se conhecido nas sessões de gravação do álbum "Boys and Girls" (1985). O coautor de "Learning to Fly" se tornaria um dos grandes colaboradores do Pink Floyd, na época "[um jovem] com uma alma antiga", segundo Bob Ezrin. É o maior sucesso do disco, tocou nas FMs de todo o mundo, figurou nas paradas e parou nas futuras coletâneas do grupo. Na época, Gilmour estava aprendendo a pilotar aviões, mas certamente a metáfora "de aprender a voar", às portas de um divórcio, também pode ser resinificada pelo fato de que agora o guitarrista era o novo comandante do Floyd. "Learning to Fly" é um dos emblemas dessa nova fase sem Waters (o álbum zipado com a régua lá em cima), imprescindível nas turnês e cravada com justiça no tracklist do futuro álbum ao vivo lançado no ano seguinte, o ótimo "Delicate Sound of Thunder" (1988).          

THE DOGS OF WAR

Uma tentativa de Gilmour em manter o clima ácido/ crítico/ político (waterista) nessa versão sem o baixista. Carmine Appice está na bateria. A temática traduz a velha artimanha política das guerras movimentadas pelo busca do dinheiro a qualquer custo. É um blues pesado, como movimentações semelhantes ao que o grupo fez em "Money". Nos saxofones, Tom Scott (Blues Brothers) e Scott Page (Supertramp), além de Bil Payne (Little feat), na pilotagem de um órgão Hammond. Um quarteto feminino de vozes encorpa os refrãos. "Dogs of War" também ganhou uma versão em videoclipe, audiovisual dirigido por Storm Thorgerson e exibida durante os shows no Mr. Screen, o lendário telão circular do Pink Floyd.      

ONE SLIP 

Bateria e baixo ao estilo das gravações de "So" (1984) de Peter Gabriel, uma das estéticas oitentistas de cozinha que merecem lembrança naquele período (no quesito mixagem sem excesso de reverberação). Phil Manzanera (Roxy Music) co-escreveu "One Slip" com Gilmour. Nick Mason está nas percussões e Jim Keltner faz o papel principal. Esteticamente pop, é uma música que já aponta para o álbum seguinte, "Divison Bell", como também faz um descolamento da vibração dos anos 1970, dando um F5 na sonoridade mais encardida da banda. Sai o brim coringa, entra a calça de lycra.         

ON THE TURNING AWAY

Uma falsa balada — pois não é uma canção de amor — um tema com uma assinatura complexa e  tempos musicais distintos, mas essencialmente acessível às massas. Temos aqui um pop de altíssima qualidade, ainda com blend do rock progressivo, perfeita em realinhar o PF naquela correção de curso pós saída de Waters, e de afirmação de Gilmour como compositor e líder. Richard Wright faz os teclados e vozes de apoio. Nick Mason novamente é substituído por Jim Keltner. É uma letra política, ambígua na sua interpretação, mas que gera uma reflexão em frases como: "A luz se transforma em sombra/ Que debruça sua mortalha sobre tudo o que conhecemos/ Ficamos desatentos, assim as fileiras cresceram/ Governadas por um coração de pedra". O lado A termina e temos a certeza que o Pink Floyd está mais vivo do que nunca.       


Divulgação PF/ Sony

Lado B

YET ANOTHER MOVIE

Referência a uma cama vazia e incompleta pela ausência da pessoa amada, a letra supostamente retrata o conflito conjugal dos Gilmour. O casal se divorciaria um ano depois do lançamento do álbum. Coautor na letra, Pat Leonard era o cérebro por trás de "Like a prayer" e "Live to Tell", de Madonna. Outro tema com a estética dos anos 1980, mas com falas adicionais de dois filmes antigos — "A Face Oculta" (1961), com Marlon Brando; e "Casablanca" (1941), com Humprey Bogart e Ingrid Bergman. Nick Mason toca apenas numa pequena parte, pois Keltner novamente brinca de baterista do Pink Floyd e, o subaproveitado John Helliwell, saxofonista do Supertramp, faz uma tímida participação. Com seus 6min22 é a música mais longa do álbum      

ROUND AND ROUND

Aqui começa o truque de mágica de "A Momentary Lapse of Reason". Após um Lado A irretocável a banda aposta em faixas interligadas (quase uma suíte), pois fica até difícil perceber onde termina "Yet Another Movie" e "Round and Round" (e esse enlace segue até a penúltima faixa), ao meu ver, uma espécie de innuendo esperto, um redirecionamento sem avisos para outro território, que no fim das contas é o mesmo em que pisamos na faixa anterior.         

Divulgação PF/ Sony
A NEW MACHINE Part 1

"A falsificação inteligente" (frase de Roger Waters) quase se justifica, pois aqui a música é cortada habilmente por Bob Ezrin e vira duas faixas, na verdade a mesma canção separada por um tema instrumental (a seguir). Apenas David Gilmour (voz, sintetizador e programações) assume a pilotagem, com uma pequena ajuda de Patrick Leonard (em outro sintetizador). Gilmour processa sua voz num vocoder (o que dá uma estética robotizada) e canta uma letra enigmática em que reflete sobre a finitude da vida

TERMINAL FROST 

Se John Helliwell, saxofonista do Supertramp foi subaproveitado em "Yet Another Movie", seus saxofones barítono e tenor saem do estojo e brilham em "Terminal Frost". Já que David Gilmour tem dificuldades de escrever letras, nada como uma boa música instrumental recheada de guitarras e camadas tônicas para habilmente preencher os sulcos do vinil.     

Divulgação PF/ Sony
A NEW MACHINE Part 2

Apenas 39 segundos, uma vinheta recortada da música anterior e enxertada como preâmbulo da última faixa do álbum. Parabéns, Ezrin! Grande sacada para encher linguiça e enfileirar mais faixas no Lado B. E não é que ficou bom?   

SORROW

Melhor solo de guitarra de Gilmour. "Sorrow" foi gravada com o barco do guitarrista em movimento pela Tâmisa. incluindo todas as partes de guitarra, vocais e bateria eletrônica. Era a primeira vez que elementos eletrônicos de programação estavam sendo utilizados numa gravação do Pink Floyd. "Na verdade me senti engolido pelos computadores nesse disco", disse um deslocado Nick Mason em sua biografia. A letra, tem trechos surrupiados de "As Vinhas da Ira", de John Steinbeck:

"Há um vento constante que sopra através da noite/ Há poeira em meus olhos, o que me cega/ E o silêncio fala muito mais alto que as falsas promessas". O tema aqui novamente bate na vida conjugal em frangalhos de Gilmour. O lado B e "Momentary Lapse of Reason" acaba com a sensação de missão cumprida, assim como "Sorrow" novamente aponta para o futuro alvissareiro do Pink Floyd, reiniciado com louvor a partir de 1987, uma banda que sobreviveria sim e, afora disso — ainda conquistando novos fãs, além de continuar faturando milhões com suas turnês e álbuns. Quem viveu essa época sabe o quanto era satisfatório vê-los de volta — nos jornais, nas revistas, na TV, nas rádios e nos toca-discos...   

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