Bob Dylan: 25 anos de "Time Out of Mind"

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|Por Márcio Grings|

“Time Out of Mind” é um disco cinzento, com raros momentos ensolarados. Quando o sol surge, é um calor que não ilumina ou conforta, ele queima, arde na pele, nos faz sentir a sensação de que precisamos seguir adiante, custe o que custar. Contudo, sabemos que a necessidade humana do contínuo movimento é salutar em qualquer circunstância, afinal “pedra que rola não cria limo”. Assim, com essa prática em ação, o tom pardacento de "Time Out of Mind" traz uma lua fantasmagórica que nos observa, um tipo omisso de santo protetor, aparentemente indisposto a oferecer algum tipo de proteção. A ambiência cheira a mofo, as letras/músicas sopram no ouvido um estranho bolor memorial, o que promove um inventário interno de perdas e ganhos (mais perdas do que ganhos), onde encontramos personagens cansados de socar os punhos na parede, todos fartos de remoer as próprias mancadas e os amores perdidos. 

Veja live no Pitadas do Sal c/ participação de Eduardo Bueno.    

  

Mesmo assim, esse disco que quase nunca sorri — chamado “Time Out of Mind” — é um álbum otimista. Esse otimismo (por um ponto de vista específico) está eternizado no triunfo que hoje ele representa, marco de um dos renascimentos de Bob Dylan, que novamente subiria o sarrafo daquilo que entregaria aos fãs, pois, justamente a partir daí, tanto nos shows quanto nos discos, tomando por base o marco discográfico encravado no dia 30 de setembro de 1997, Dylan nunca mais foi criticado por suas entregas.  

Depois do vitorioso "Oh Mercy" (1989), numa breve retrospectiva, voltando aos anos 1990, “Under the Red Sky" abre a década de 1990 como um trabalho que oscila bons e maus momentos. Logo depois, dois improváveis títulos de transição preparariam o terreno para a segunda metade daquele período — ”Good As I Been to You" (1992) e "World Gone Wrong" (1993) — obras acústicas elaboradas apenas por canções tradicionais (folk/blues), antigos temas de blues rearranjados por Dylan, espécie de combustível abastecido para disparar as próximas canções que iria compor. Metade das músicas de "Time Out of Mind" utiliza os 12 compassos do blues, e para quem certa vez declarou “não se sentir conectado a coisa alguma” (frase do titular do álbum), é inegável a conexão fortíssima com o som encardido das décadas de 1920/30, uma referência permanente até hoje — quanto mais antigo for, melhor será.       

Acervo pessoal
Com isso, no início de 1997, ele novamente chama Daniel Lanois para produzi-lo — mesmo diretor musical de “Oh Mercy”, o mais bem sucedido de seus discos nos anos 1980 (pelo menos pela crítica) Assim, se enfurna com um punhado de veteranos em Miami, cidade onde burilaria aproximadamente 15 músicas, das quais 11 acabariam em "Time Out of Mind" (os outtakes podem ser encontrado em “ The Bootleg Series Vol. 8 - Tell Tale Signs: Rare and Unreleased" (1989-2006).

Antes do lançamento de TOoM, ainda em 1997, Dylan acabou num hospital com Pericardite (ou histoplasmose), um problema cardíaco sério. Quando o álbum finalmente saiu, canções como ”Not Dark Yet" e “I Can’t Wait” pareciam ácidas reflexões sobre a experiência de quase-morte, embora as músicas tenham sido escritas e gravadas meses antes dele adoecer. Ainda hoje, quando ouvimos o disco, dá pra perceber uma aura nebulosa, um som pastoso que amarra conceitualmente tudo. A arquitetura do disco soa antiga e nova ao mesmo tempo, “Love Sick”, “Standing in a Doorway”, “Not Dark Yet” e “Make Me Feel My Love” parecem canções enriquecidas pelo espólio de “Oh Mercy”, embebidas numa atmosfera frágil e inquietante, sensações ampliadas pela produção de Daniel Lanois, chancelado pela coprodução de Jack Frost, ou seja — ele próprio, seu alterego na cadeira de um estúdio. Durante o processo de gravação houveram divergências sobre as práticas de captação, tanto que Daniel Lanois foi o último a produzi-lo, pois a partir das próximas gravações Dylan passaria a se autoproduzir.      

Acervo pessoal

14 músicos tocam no disco, entre eles seis guitarristas ou violonistas, três tecladistas e quatro bateristas. Lá estão Daniel Lanois (bandolim, guitarra, violão etc.), Bucky Baxter (violão e pedal steel, músico de apoio do R.E.M, Ryan Adams, Steve Earl), Bob Britt (violão e guitarra, sideman de Leon Russell), Cindy Cashdollar (guitarra slide, integrante do Asleep at the Wheel), Ducky Rubbilard (violão e guitarra), Jim Dickinson (teclado, piano elétrico e órgão, um dos músicos que tocou com os Stones no período áureo nos anos 1970), Augie Meyers (órgão Vox, Hammond B3 e  acordeom, integrante do Sir Douglas Quintet) e Tony Garnier (baixo). Nas baquetas — o jazzista Brian Blade, Winston Watson (qque fez mais de 400 shows com Dylan nos anos 1990), David Kemper  (integrante da Jerry Garcia Band e que seria o baterista do show em Porto Alegre em 1998) e a lenda Jim Keltner (um dos mais requisitados session musician do rock), além de um percussionista (Tony Margurian). 

Muitos dos músicos que participaram das gravações dizem que não conseguem distinguir quem tocou o que, tamanha a engenharia de Lanois em montar o quebra-cabeças produzido durante a captação. Dylan canta, toca violão, guitarra, gaita e piano. Além da onipresença do protagonista, os únicos que atuam em todas as músicas são Tony Garnier e Augie Meyers. Os bateristas mais utilizados são Jim Keltner e Brian Blade (eles tocam juntos em 7 músicas), três delas com Tony Margurian potencializando as batidas com a percussão, o que identifica uma das marcas de Lanois, o mesmo som percussivo que encontramos em vários de seus trabalhos e que brilham em canções como “Million Miles” e “Can’t Wait”. Tudo foi gravado ao vivo em janeiro de 1997, em menos de 20 dias, em sessões diários de 12h no Criteria Studios, em Miami. 73 minutos estão eternizados no álbum. 

As sessões foram registradas em vídeo (essas imagens ainda não vieram ao mundo) por Bob Lanois, irmão do produtor. O estúdio foi ambientado com sofás e um a iluminação suave, numa tentativa de emular um ambiente caseiro e confortável aos músicos.                

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LOVE SICK

Desde 1997 até hoje, Dylan já tocou 967 vezes ao vivo "Love Sick", tornando essa uma de suas canções preferidas na estrada, pelo menos nos últimos 25 anos. Ele diz estar farto e cansado de “um tipo de amor” ao qual ele não mais acredita. Fala de romance, mas de um tipo cascudo de amor onde as flores murcham, onde os buquês nunca são entregues e acabam sendo jogados nas latas do lixo. Dylan é o solitário que caminha pelas ruas mortas, o homem que ouve no silêncio o som de um trovão, o amante que tenta esquecer uma mulher que ele ainda daria tudo para encontrar apenas mais uma vez. O órgão Farfisa de Augie Meyers bruxuleia vendendo perigo e tensão. Ao vivo, no show de Porto Alegre em 1998, Dylan e seu guitarrista, Larry Campbell, dividiram os solos, trocando olhares como se fossem comparsas preparando uma emboscada. Em "Time Out of Mind", "Love Sick" é o cartão de visitas do disco, mas ela acabou por ser encaixada geralmente nas partes finais de seus shows e ainda hoje frequenta com assiduidade o setlist das apresentações do NET. Brian Hinton, um de seus biógrafos, diz que “Love Sick” pode ser comparada a aura de “I Put Spell on You”, de Screamin’ Jay Hawkins, só que ele a imagina como trilha-sonora de um hospício.   

DIRT ROAD BLUES

Blues da estrada de chão batido que leva a um antigo esconderijo de um casal de amantes. O homem, refugiado no meio do nada, à espera de uma mulher que não virá. Ele procura o amor, mas é chuva e granizo que ele leva no lombo. Só lhe resta olhar o crepúsculo e se maravilhar com o indesejado exílio. “Dirty Road Blues” soa como uma gravação da Sun Records, reverbere na medida, inspirada em “Down the Dirty Road Blues”, de Charlie Patton e “Dirty Road”, de Arthur ‘Big Boy’ Crudup. O resultado nos faz imaginar Carl Perkins tocando num boteco do Mississippi. Mas é Bob Dylan...      

STANDING IN THE DOORWAY

Inspirado em Bullfrog Blues”, de William Harris, Dylan ainda usa frases reescritas de “Danville Girl”, de Dock Boggs (smoking a cheap cigar) e de “Moonshiner Blues”, uma música cantada por Ma Rainey:

“Me deixem comer quando eu tiver fome/ me deixem beber quando eu estiver com sede”. Em “Standing in a Doorway” ele diz: “Eu como quando estiver com fome/ Eu bebo quando tiver sede”, e complementa: “E vivo minha vida às claras”. Será? O tom ecumênico aproxima o sacro e o profano. A dúvida entre beijar ou matar o amor, as palavras não ditas, a espera pela intervenção divina no comboio da meia-noite, um pico de água gelada nas veias, lágrimas de um herói abatido sofrendo em frente uma porta fechada na sua cara. É Dylan lutando contra os fantasmas de um amor antigo, mas também soa como uma balada reflexiva, o balanço geral dos acontecimentos de uma vida.  

MILLION MILES

Dylan a um milhão de milhas da mulher desejada. Ele não se atreve a fechar os olhos, não pestaneja com as mazelas da vida e gosta de conversar com os estranhos. Ele diz “I Need you love so bad / Turn your lamp down low), uma clara citação a duas músicas (I Need Your Love So Bad, de Little Willie John, na primeira frase; e  “Statesboro Blues” de Blind Willie McTell, na segunda linha. O clima nos leva a um enfumaçado Clube de Jazz e o locutor da canção tem a voz de um serial killer. Se Tom Waits regravar “Million Miles” em algum de seus discos será uma escolha adequada.  

TRYIN’ TO GET TO HEAVEN

“Quando se pensa que se perdeu tudo/ Descobre-se que pode se perder mais um pouco/ Vou estrada abaixo sentindo-se mal/ Estou tentando chegar ao céu antes que fechem a porta”. Depois diz: “Estive em Sugar Town/ Sacudi todo o açúcar/ Estou tentando chegar ao céu antes que fechem a porta”. A Cidade de Açúcar mencionada na letra é uma provável menção a canção homônima que fez sucesso em 1966/67 na voz de Nancy Sinatra, que segundos alguns faz referência ao uso de LSD. Se um dia ele bateu na porta do céu (Knockin' On Heaven's Door) e alguém a abriu, aqui Dylan caminha no meio do nada e envolto numa nuvem de poeira não tem a mínima ideia de onde está a maldita porta e por quem ele pode chamar. Encontramos em "Tryin' to Get to Heaven" o único solo de harmônica do disco (na verdade dois), e que solos, gaita plugada num amp valvulado soando como uma canção de ninar no purgatório.       

‘TILL I FELL IN LOVE WITH YOU

Nada é capaz de curar as dores de Dylan, a não ser o toque na mão de sua amada, mas ela o abandonou. “Estava bem até me apaixonar por você”, define. Assim, quando o lixo se acumular na sua casa, quando os olhos começam a cair do seu rosto e, quando o suor escorre na sua face numa casa escura com janelas fechadas, ele resolve movimentar as coisas, pegar a estrada (sempre a estrada como redenção na sua turnê sem fim) e ruma para o sul, pois talvez só o ‘Dixie’ imaginário das canções de amor possa salvá-lo. Um blues cíclico que parece interminável, com riffs retos de guitarra e uma letra dramática. Destaque para o teclado Wurlitzer de Jim Dickinson, tilintando em todos os momentos da música.          

NOT DARK YET

Se “Love Sick” é o álbum zipado,”Not Dark Yet” é o centro emocional  de “Time Out of Mind”, uma das maiores canções de Bob Dylan em todos os tempos, e possivelmente um de seus videoclipes mais lembrados. Dirigido por Michael B. Borofsky (Pixies, Elvis Costello), o audiovisual foi filmado em Memphis, Tennessee, em outubro de 1997. O vídeo justapõe imagens coloridas e em preto e branco de Dylan, acompanhado de sua banda, tocando no palco do New Daisy Theatre na Beale Street, com imagens da cidade. O material foi lançado em março de 1998, um mês depois que “Time Out of Mind” e dias antes do show em Porto Alegre. Outro videoclipe foi filmado para "Love Sick", captado no mesmo local e dia (nunca lançado), com participação da modelo Rachel DiPaolo.

   “Sinto como se minha alma fosse de aço/ Tenho cicatrizes que o sol não curou (...) “A humanidade desceu pelo ralo/ Atrás de cada coisa bela há algum tipo de dor”. E depois diz: “She wrote me a letter/ And she wrote it so kind”, uma frase que também está em “Girl from the River Shore”, de Slim Crichlow. “Aqui nasci e aqui morrerei contra minha vontade/ Parece que estou me mexendo, mas estou parado/ Não consigo sequer me lembrar do que fugia quando vim  parar aqui/ Não ouço sequer o murmúrio de uma oração/ Ainda não escureceu, mas logo vai escurecer”. É uma balada apocalíptica de um mundo que desaparece debaixo de seus pés. Há um saudosismo, mas também a aceitação de uma dura realidade, tipo: “Tá ruim? Então, segure-se! Pode ficar ainda pior. Por isso, seja forte e resista... ou morra!”. Trilha-sonora para o fim dos tempos (do mundo ou de uma vida). Segundo Emmylou Harris, "Not Dark Yet" é a melhor canção já feita sobre envelhecer. 

Recomendo: confira a versão de Shelby Lynne e Allison Moorer para "Not Dark Yet".   

COLD IRONS BOUND

Os falsos amigos e amores, os aproveitadores de plantão, Dylan destila sua raiva em “Cold Irons Bound”. Assim diz: “Há gente demais/ Julgava que algumas dessas pessoas eram minhas amigas/ Me enganei sobre todas/ Estrada de pedra e enlameada/ Acima de mim nuvens de sangue”. E, além disso: “Encontrei o meu mundo em ti/ Mas o teu amor não se mostrou verdadeiro/ Estou a 20 vinte milhas da cidade e preso numa cela fria”. Outro tema que apareceu no show em Porto Alegre em 1998, numa versão ao vivo com destaque para a bateria de David Kemper, com volume no máximo e bem mais pesada do que a original do disco. Essa música lhe deu o Grammy de Melhor Performance Vocal Masculina em 1998. O disco ainda faturou outras duas categorias: Álbum do Ano e Melhor Álbum de Folk Contemporâneo.           

MAKE YOU FEEL MY LOVE

Duas estrofes ilustram a mais potente canção de amor de “Time Out of Mind”, e talvez uma das músicas perdidas dessa leva, mas resgatada por uma versão ao vivo de Adele e pelo longa “A Vida em Si” (2018), dirigido por Dan Fogelman, que utiliza o álbum de Dylan como inspiração para o roteiro do filme, e “Make You Feel My Love” como chave nos momentos finais da trama:

“Passaria fome, ficaria na pior/ Rastejaria na avenida/ Não há nada que eu não fizesse/ Para te fazer sentir o meu amor/ As tempestades grassam no mar agitado/ E na estrada do remorso/ Os ventos da mudança sopram bravios e livres/ Você ainda não conheceu ninguém melhor do que eu”. Há apenas o piano de Dylan e o órgão de Augie Myers como acompanhamento, emprestando um acento gospel e ecumênico no resultado final. Uma curiosidade: "Make You Feel My Love" foi lançada em formato comercial por Billy Joel antes de "Time Our of Mind" ser lançado em 1997 (obrigado pela dica, Sal!). 

CAN’T WAIT

Baterias e riffs em loop, baixo jogando de atacante (quase oitavando), teclados preenchendo os espaços, ambiência percussiva, o disco chega ao fim e não perde o fôlego. “O céu está cinzento/ Estou à procura de algo que traga um brilho promissor/ Dia ou noite, já não interessa a direção, apenas vou/ Se alguma vez te visse chegando não sei o que faria/ Gostaria de me iludir que haveria algum tipo de controle emocional, mas não iria rolar/ É o que acontece quando as coisas se desfazem/ E não sei quanto tempo ainda posso esperar”. Vocal catarrento, perfeito, climática tensa, é um dos momentos mais brilhantes de um disco não menos brilhante.  

HIGHLANDS

A letra deriva de "My Heart's in the Highlands", de Robert Burns. O riff que fica permanentemente soando em loop na música é inspirado num tema de Charlie Patton. Dizem que há um outtake da música ainda não lançado com 27 minutos. “Highlands” (terras altas) é uma metáfora para a sensação de isolamento e da busca de um Shangri-lá onde Dylan possa se refugiar, ou pelo menos resgatar parte da magia que parece ter desaparecido do ar: 

“O sol está começando a brilhar sobre mim/ Mas não se compara ao sol de antigamente/ A festa acabou e há menos e menos a dizer/ Tenho novos olhos. Tudo parece mais distante”. 

E finalmente, já no fim do álbum, o humor triunfa em dois momentos da música, uma das mais longas escritas por Dylan e que toma todo o último lado do LP com seus 16 minutos e meio. Primeiro, não tem como não abrirmos um sorriso na descrição da estrofe “Veio do Saco” de “Highlands:

“Estou atravessando a rua para fugir de um cão sarnento/ Falando comigo mesmo, num monólogo/ Acho que preciso de um casaco de couro cumprido/ Alguém me perguntou se estou registrado para votar”. Em outra parte parte, em oito estrofes, Dylan conta seu encontro com uma garçonete em Boston. A moça tenta adivinhar o pedido do cliente, e acerta: ovos cozidos. Daí depois fala que ele chegou na hora errada, pois a cozinha está sem ovos na cozinha. A garçonete afirma que ele tem cara de artista e pede para que Dylan faça um retrato dela, num guardanapo, o que (contrariado) acaba por faz. Entrega o desenho pra moça que diz que não se parece nada com ela. O disco acaba com esse elemento de humor, uma espécie de esperança poética, o relato de um viajante solitário rumo às Highlands, onipresente nos dois lados do Atlântico, seja em Aberdeen, na Escócia, ou em Boston, nos Estados Unidos, mas sempre com a companhia de Neil Young no rádio do carro.

Ouça, ouça, ouça!       


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