Você já experimentou?


Eu tenho uma ligação cósmica com Jimi Hendrix: nasci no mesmo em que ele pisou num palco pela última vez — 6 de setembro de 1970, no Open Air Love & Peace Festival em Fehmarn, na Alemanha, a poucos quilômetros da costa dinamarquesa. 12 dias depois ele estaria morto. Então, estive no mesmo planeta com Jimi por quase duas semanas. E mesmo que eu fosse um bebê, mesmo que eu não tivesse a mínima ideia (ou consciência) de quem ele era, anos depois eu seria assombrado pelo seu fantasma. 

Veja a live referente aos 50 anos de "Are You Experienced" pelo Pitadas do Sal. 


A primeira vez que ele deu às caras na minha vida foi no meio dos anos 1980, no dia em que ouvi a versão de "Fire", gravada no Winterland, em San Francisco, no ano de 1968; e "I Don't Live Today", versão gravada em San Diego, Califórnia, em 1969. Logo depois fui cooptado pela apresentação de Hendrix em Woodstock, exatamente o show que encerra um dos eventos mais celebrados da história do rock mundial. Manhã de segunda-feira, Jimi toca para cerca de trinta e cinco mil resistentes espectadores. Quase 9 da manhã, o público restante se aglomera em frente ao palco e vibra com a volumêra batendo no peito. Chega um momento que a guitarra de Hendrix se transmuta no grito de socorro dos soldados americanos no Vietnã — o tema em questão era "Star-Spanged Banner", reinvenção lisérgica do hino americano. Soava (e ainda soa) como um tiroteio, como helicópteros sobrevoando, como metralhadoras fuzilando inocentes em um campo de batalha. Jimi Hendrix levantou a bandeira branca e comandou o toque de recolher do evento. No final do set, quando vemos o filme, a cena lembra uma terra de ninguém com andarilhos vagando num mar de lixo.  

Sempre achei o máximo o enquadramento fixo da câmera durante sua apresentação em Woodstock — Jimi se abaixa e imagem fica no vazio. Logo depois ele emerge de volta ao foco. Ainda lembro de um take específico em que a câmera o mostra de olhos fechados. Enquanto isso ele esmerilha a guitarra, como se estivesse vivendo algum tipo de encantado, como se estivesse sonhando, dormindo, mas os dedos dele voam pelos trastes e passeiam de norte a sul pelo braço do instrumento. 

Veja! 


Presença de palco; o uso da alavanca do tremulo, muitas vezes batendo nela como algo percussivo; o uso do polegar para fazer uma pestana ou acordes (o chamado quinto dedo); a fricção da guitarra com o pedestal do microfone; o uso de seus anéis como slide; mesmos anéis onde ele escondia suas palhetas; as afinações sinistras; com os botões dos amps no máximo e o uso do controle do volume da guitarra para alternar dinâmicas; o uso do próprio corpo do instrumento que extraia vibrações semelhantes ao uivo de um animal; o posicionamento do corpo frente aos falantes, o uso do feedback — qualquer lista que não o coloque no topo trata-se de um ranking sem credibilidade. Buscando referências entre seus ídolos (veja Jimi Hendrix na plateia de um show de Buddy Guy) ele mudou a guitarra, sua abordagem, o uso de feedback, mestre do pedal wah-wah, na alavanca, feiticeiro com sangue Cherokee misturado a sua alma afro-americana. Tudo começou em "Are You Experienced", o início de tudo e simplesmente o disco que virou a cabeça de todo santo guitarrista que um dia pensou em pegar uma guitarra e tocar rock and roll. Como escudeiros — Noel Redding (baixo) e Mitch Mitchell (bateria), formação clássica para o bordão ser anunciado: "Super Gênios, ativar!" — e o mundo vem abaixo.  

Divulgação

Lado A

FOXY LADY

Esqueça a letra sem inspiração e entre no embalo de uma das canções-chave do som hendrixiano. É uma música para chacoalhar o esqueleto, pra balançar o corpo e bater o pé. O cunho sexual tem ligação direta com voz e os sussurros de Jimi. A despeito de sua afirmação recorrente em muitas entrevistas — de não gostar do som da sua voz — pense numa expressão vocal com identidade própria e repleta de ginga, ritmo próprio. Até falando Jimi Hendrix era musical.        
 
MANIC DEPRESSION

O suingue da bateria de Micht Mitchell — meio ao estilo do que Elvis Jones fazia nos discos de Miles Davis e Charles Mingus — é o tour de force de "Manic Depression". Essas influências jazzísticas e a construção vocal num fraseado inspirado em Bob Dylan trazem um som fora da curva naquele 1967, o tipo de som que piraria meio mundo. A letra fala de um personagem em depressão profunda que encontra apenas no sexo uma luz para sair do fundo do poço, nem que seja no espaço de uma transa, para logo depois voltar ao lado escuro da existência. Será que "Manic Depression" não foi uma das primeiras músicas a abordar diretamente o tema da depressão, numa época em que pouco se falava sobre isso?  
     
RED HOUSE

"Red House" é Jimi em seu estado bruto, mas já repleto de polimento. É um dos melhores blues da sua carreira, talvez o melhor. Outra canção sexual, de uma amor que se esfacela, mas "Tudo bem, eu ainda tenho minha guitarra", diz Jimi. 
    
CAN YOU SEE ME

Depois de três voadoras no ouvido, "Can You See Me" parece uma canção mais ajustada ao som do que já rolava naquele período. O solo de Hendrix, curto, e o bordão cíclico que divide a música, ensopado de reverbere, revela que alguém pensou em cores e tonalidades (salve, Eddie Kramer).    

LOVE OR CONFUSION

O eco na voz de Jimi em "Love or Confusion" e o clima etéreo estão pareados com a era da psicodelia que encontrou seu auge em 1967, o ano mais lisérgico do rock. No entanto, a produção de Chas Chandler não comete excessos, é tudo na medida, não há longos passeios lisérgicos, e talvez seja neste momento que tenhamos chegado ao cume dessa experiência.      

I DON'T LIVE TODAY

Toda vez que ouço "I Don't Live Today" volto aos 15 anos e àquela versão do disco ao vivo de 1982 captada num show de 1969 em San Diego, na Califórnia. O início é matador. Mitch Michell vem como um psicopata, Jimi coloca na cara do ouvinte o seu riff mais hipnótico. Outro tema barra pesada, repleto de ameaça, na mesma onda cortante de "Manic Depression":

"Viverei amanhã? Bem, acho que não posso dizer (...) Nenhum sol irrompe pela janela/ Sinto como se vivesse no fundo de um túmulo". 

Há cinco falsos finais, como se alguém estivesse brincando com o botão de volume — fade in e fade out — Jimi abre a caixa de ferramentas e mata todos os leões em 3 minutos e 55 segundos, como destaque para o uso da alavanca da guitarra, uma forma de tocar que levou o instrumento para outro patamar.       

Lado B

MAY THIS BE LOVE

"May This Be Love" poderia ter sido gravada pelo The Doors. Jimi segura mão, o solo é contido, de extremo bom gosto. O músico nos leva para um banho de cachoeira, uma pausa de toda a loucura (dos anos 1960) e do próprio disco, um convite para iniciarmos o Lado B em tom de reflexão e tranquilidade.     

FIRE

Que nada! A loucura está de volta! Um dos principais cavalos de batalha de Jimi nos palcos, "Fire" tem uma atmosfera dançante, como toda a potência que um power trio pode exibir. A letra, novamente vazia pelo ponto de vista literário, é o que menos importa por aqui.      
  
3rd STONE FROM THE SUN

Aqui podemos entender a capacidade do Jimi Hendrix Experience de mudar a palheta de cores e oferecer o inusitado. "3rd Stone From The Sun" só não pode ser considerada uma faixa instrumental por que sua voz falada versa por aqui, seja em rotação alterada, ou manipulada como um rádio de pilha inaudível, e até mesmo audível e até em tom de galhofa: 

"Nunca mais vou escutar surf music", diz ele em um dos trechos. 

O baixo pulsante de Noel Redding é o que se mantém mais estável na música, mas como um zangão batendo e mantendo sua pulsação, assim como a bateria de Noel Redding, menos expansiva, mais controlada, ou às vezes não. Ao contrário, Jimi pode soar ao estilo de Wes Montgomerry ou totalmente livre, sem uma moldura específica, ou ainda pode brilhar numa sequência de acordes melódica, mas sem deixar de explodir como uma bomba nos segundos finais, o que eu chamo de "som de bicho morrendo", pois ele consegue materializar uma representação fantasmagórica que certamente deixou muita gente zonza em sem entender nada. Hoje sabemos, ele estava à frente de todos.         
   
REMEMBER

Um pouco de normalidade com "Remember", uma música pouco lembrada, mas que soa bem no contesto do álbum, com uma letra que pede o retorno de um amor perdido e evoca a lembrança de pássaros rumorosos e abelhas em busca de mel.    
   
ARE YOU EXPERIENCED    

A experiência do LSD, de uma era de experimentação e arroubo, de liberdade, pode ser representada nessa despedida do álbum. "Are You Experienced" traz fitas invertidas a lá "Tomorrow Never Knows" dos Beatles, numa batida proto-eletrônica, extremamente inusitada para a época. Assim como em "3rd Stone From The Sun", o Jimi Hendrix visionário à frente do seu tempo, se antes ele causava estranheza, hoje é celebrado como gênio em canções revolucionárias como essa, e numa boa letra:

"Se você conseguir ficar atento/ Viaje até mim/ Daremos as mãos e curtiremos o pôr do sol/  [De onde] do fundo do mar!/ Mas primeiro eu preciso saber: você já experimentou?/ Alguma vez experimentou?/ Preciso dizer: eu sim! / Sei que você vai chorar e gritar/ E que se mundinho não te deixa partir".

Em novembro, no dia 27, o mundo irá lembrar os 80 anos do nascimento de Hendrix, o artista que quando cantava, numa primeira passada de olhos/ouvidos, surgiu como um cruzamento de James Brown com Bob Dylan. Quando "Are Your Experienced" bateu nas prateleiras, Jimi já tinha comido o pão que o diabo amassou em seis anos de estrada nos dois lados do Atlântico. No placo, erótico demais para alguns, certamente abusado e sem preconceitos pela perspectiva de qualquer ponto de vista. Sua música, um fio de aço que segue além, resistente e ainda impressionante, viajou bem além da Swinging London — que conquistou num passe de mágica —, uma hecatombe em forma de música. 

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