The Birth of the Cool, um triunfo de Miles Davis


Por Márcio Grings

Das figuras ilustres do jazz do pós-guerra, Miles Davis era a luz a ser seguida, um astro pop com status de estrela de cinema. Tenho muitos ídolos no jazz: Chet Baker, Cannobal Aderley, Anita Baker, George Shering, Charlie Parker, Dizzy Gilespie, mas Miles Davis está no topo dessa lista há anos. Lembro dele como o homem que mudou a música e transformou o jazz várias vezes: bop, cool jazz, fusion, bebeu na tradição, mas entortou tudo, seja no jazz acústico e tradicional, ou virando tudo para o outro lado e colocando tudo na tomada. Lembro de Miles e sua 'banda de rock' no Festival da Ilha de Whight, lembro dele nos anos 1980, pegando o pop de Michael Jackson e Cindy Lauper e transformando sua música em pop feito sob medida para as FMS. Poucas vezes Miles Davis esteve desconectado, mesmo com toda a bagunça de sua vida virou em dados momentos, seja pelo álcool, drogas e paixões violentas. 

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O INÍCIO

Davis, um afro-americano nascido em 1926, teve uma educação surpreendentemente privilegiada. , seu pai, dentista e agricultor, era um dos homens mais ricos de Illinois, embora isso dificilmente isolasse o jovem Miles dos males de Jim Crow, lei de segregação que imperava nos estados do Sul. Assim que começou a tocar trompete, um instrumento que o pai escolheu para ele (sua mãe defendeu o violino e – felizmente – perdeu), ele estava determinado a chegar à cidade de Nova York e se juntar à revolução da era do bebop.

Assim conheceu Charlie Parker e Dizzy Gillespie. Formado na Juilliard, uma escola de música considerada branca demais para os conceitos do jazz (negro até a medula), quando viajou para Paris, foi tratado como uma estrela em ascensão – e, pela primeira vez, alguém em pé de igualdade com os brancos. Lá, trocou figurinhas com Pablo Picasso e Jean-Paul Sartre, além de ter namorado a atriz e cantora Juliette Gréco. Miles Davis queria ter ficado na Europa...

O SUCESSO

Logo depois, assinaria com a Columbia e gravaria o álbum que até hoje é sua base mística. “Kind of Blue”, embora as harmonias fossem descendentes do bebop, produziu uma música de um romantismo estonteante. Era música para se ouvir às 3 da manhã – música para os brancos podiam fazerem amor. Foi o álbum que elevou Miles a um panteão só dele.

A DECEPÇÃO

Há uma curiosa coincidência no fato de que em agosto de 1959, no mesmo mês em que "Kind of Blues" foi lançado, até hoje o disco mais vendido de jazz de todos os tempos, Davis estava do lado de fora de Birdland, um dos mais tradicionais clubes de jazz de NY, fumando um cigarro entre um set e outro, quando um policial lhe disse que ele não poderia ficar ali; sua recusa em obedecê-lo resultou em violência. Quando vemos fotos daquela noite fatídica, tão perturbador quanto o sangue na jaqueta de Davis é seu olhar estupefato, pensando: "por que não fiquei em Paris?".    

BIRTH OF THE COOL

Durante a última etapa nos anos 1940 e no início dos anos 1950, Davis entrou em estúdio para gravar uma série de canções. O resultado mostra uma modulação do seu estilo inicial de tocar, já que a maior parte do álbum é composta por baladas bebop, bem como algumas músicas que buscam uma estrutura de música pop antiga. Por outro lado, o bop era uma música anticomercial, mas o que acabou se tornando “Birth of the Cool” reúne temas que rejeitam a 'nota dura' dessa flâmula. Embora o álbum tenha sido lançado apenas em 1957, este é o ponto na carreira de Davis em que ele começou a apostar mais alto, foi quando ele começou a propor suas regras.  

A seleção de músicas encontradas em “Birth Of The Cool” tem apenas dois originais de Miles (Budo, Deception), pois a maioria das faixas são covers. Nada de faixas longas, nenhuma delas ultrapassa os três minutos. Apesar de serem releituras, é aquele história, ele as reinventa. Outro aspecto são os arranjos, cortesia de Gil Evans, John Lewis e Gerry Mulligan, e bons arranjos levam a músicas incríveis. 

Os saxofones estão quase sempre em destaque, há solos em quase todas as composições. Na seção rítmica a bateria geralmente está acelerada com um toque de experimentação aqui e ali, em uma linha de baixo potencializando esse ritmo. Na maior parte do tempo o piano fica em segundo plano. Esse é o campo de força protetor de Miles, que não economiza nos solos, mas não os estende, não permite que essa sessão se torne uma jam session. 

Empacotado como álbum, “Birth Of The Cool” é um álbum inovador, seminal, onde o bop foi colocado dentro de uma moldura. Miles cria uma atmosfera de outros elementos misturados à instrumentos típicos de jazz. Além de trazer um set demonstrativo do bebop, “Birth Of The Cool” revela a própria evolução de Miles Davis como artista. 

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AS MÚSICAS 

LADO A

Em "Jeru" (Gerry Mulligan) ele já dá o ar da graça, cortando o tema ao meio enquanto o restante da banda faz a base citando o tema. 

"Move" (Denzil Best) é um pontapé na porta, Miles Davis Sound, raspando o tacho do bop, mas avançando rumo ao futuro do jazz. Arranjo de John Lewis.  

"Godchild" (George Wallington), coloca o saxofone na linha de frente, mas Miles entrecorta tudo com seu trompete. Arranjo de Gerry Mulligan.    

"Budo" (Miles Davis/ Bud Powell), é uma obra-prima melódica, cheia de tudo, desde solos, marca registrada dele, até um brecha ocasional onde o piano brilha. Os saxofones e os trompetes se fundem e formam uma camada harmônica. Arranjo de John Lewis.  

"Venus de Milo" (Gerry Mulligan) é uma música típica de arranjador, onde Gil Evans mata todos os leões e ensina como o cortado funciona.

"Rouge" (John Lewis) faz o retorno ao início de "Birth of Cool", numa essência circular, e é só nessa faixa que o piano finalmente brilha.  

LADO B

"Boplicity" (Cleo Henry/ Gil Evans) Miles e banda quase soando como a orquestra de Duke Elllington na sua forma clássica, tudo no lugar, apesar do tema levar bop no nome. Miles novamente olhando para frente, formatando o cool jazz. Arranjo de Gil Evans.  

Em "Israel" (John Carisi) um solo de saxofone bota fogo no coreto, enquanto o piano surge eventualmente. 

"Deception" (Miles Davis), original de Miles, é uma música típica que revela seu talento. A bateria permanece igual o tempo todo, como leves chamuscadas fora da moldura. Uma tuba dá o ar da graça em um dos solos. Arranjo de Bill Evans. 

 "Rocker" (Gerry Mulligan) outra vez o bop passa pelo cinzel do trompetista, aparando supostos excessos.

"Moon Dreams" (Johnny Mercer) é a América de terno e gravata, jazz tipo exportação, soundtrack pra um filme de Hollywood, pode ser até alguma daquelas bobagens protagonizadas por Rock Hudson e Doris Day. 

Músicos participantes das sessões:

Miles Davis – trompete (todas as faixas) | Kai Winding – trombone (Janeiro de 1949) | J.J Johnson – trombone (Abril de 1949, Março de 1950)  | Junior Collins – trompa (Janeiro de 1949)  | Sandy Siegelstein – trompa (Abril de 1949)  | Gunther Schüller – trompa (Março de 1950)  | Bill Barber – tuba (todas as faixas)  | Lee Konitz – saxofone alto (todas as faixas)  | Gerry Mulligan – saxofone barítono (todas as faixas)  | Al Haig – piano (Janeiro de 1949)  | John Lewis – piano (Abril de 1949, Março de 1950)  | Joe Shulman – baixo (Janeiro de 1949)  | Nelson Boyd – baixo (Abril de 1949)  | Al McKibbon – baixo (Março de 1950)  | Max Roach – bateria (Janeiro de 1949, Março de 1950)  | Kenny Clarke – bateria (Abril de 1949).  

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