40 ANOS: SIMON & GARFUNKEL “THE CONCERT IN CENTRAL PARK”


Por Márcio Grings

Em “Quase Famosos”, quando Anitta (Zooey Deschanel) abandona a casa dos Miller por divergências com a mãe (Frances McDormand), é ao som de “America”, de Simon & Garfunkel, que ela dá adeus: “Este som explica por que estou saindo de casa para ser aeromoça”, ela  diz. 

“Sejamos amantes, juntemos nossas economias/ Tenho algum dinheiro guardado aqui na minha bolsa/ Aí compramos um maço de cigarros e umas tortas da Sra. Wagner/ E depois cairemos no mundo e encontraremos a América”    

Como uma promessa de liberdade, a jovem avisa a William (Patrick Fugit), seu irmão, que ele espie debaixo da cama, pois após essa visão ele será libertado. Lá o garoto descobre que ganhou de presente a coleção de discos de vinil da irmã. Antes ainda, com hálito de bebida, Anita já havia sido reprimida pela mãe por ter passado a noite fora, quando tenta entrar escondida noo seu quarto com um exemplar de “Bookends” (1968), acobertado debaixo do casaco, mesmo LP que ela usou como trilha-sonora da sua despedida. “A música deles é sobre drogas e sexo promíscuo”, diz a mãe. “Simon and Garfunkel é pura poesia”, defende Anitta. “Estão chapados”, alerta a mãe repressora, detalhando a capa com a lendária foto de Jim Marshall. 

“Quase Famosos” é um filme sobre rock and roll, um dos melhores que eu conheço. Cameron Crowe, o diretor, usa “America”, música e letra de Paul Simon, para explicar esse irrefreável desejo de comer a poeira da estrada e construir um nova história. Não é uma canção do Led Zeppelin ou dos Rolling Stones que é usada para iconozar esse símbolo de rebeldia. Hoje, talvez muitos vejam a música de Simon & Garfunkel como algo meloso, sem conexão com o lado inssurgente do rock and roll. Eis um dos grandes equívocos e inversões sobre as criações da dupla, pois suas canções são revolucionárias e transgressoras, mesmo sem as guitarras distorcidas e encharcadas de efeitos. O veneno está nas letras de Paul Simon. Veneno ou elixir? Esses poemas/manifestos em formas de música, a união das vozes de Paul e Art e, principalmente, pela obra que criaram juntos, encontra seu resumo biográfico em “The Concert in Central Park”. Eu ainda os reconheço como uma das grandes balas de canhão da música mundial, e o barulho provocado pelo concerto feito em pleno no pulmão verde de Nova York, no incío dos anos 1980, ainda hoje repercute como uma das maiores celebrações da história da música. 

Confira a live no canal Pitadas do Sal sobre os 40 anos de "Live in Central Park"


Imagine uma dupla de amigos que se conhece desde o colegial, os dois com a mesma idade, nascidos em 1941, cantando juntos desde os 12 anos, numa escola do Queens, em Forest Hills, primeiramente influenciados pelos irmão Don e Phil, os Everly Brothers, depois por Beatles, Hollies, Byrds e pelas harmonias vocais dos Beach Boys. Começaram como Tom e Jerry (primeiro nome da dupla), batalharam por um espaço no concorrido cenários dos anos 1960, para só depois assumirem seus verdadeiros nomes. Gravam um disco que passa batido, explodem com “Sound of Silence” (quase que por acaso) e, correm a passos largos para o estrelato numa carreira meteórica de apenas seis discos, para depois, tornar-se uma dupla bissexta. Havia divergências entre os velhos amigos, uma amizade e parceria que em 1981, quando o show do Central Park foi gravado, já chegava a quase 30 anos desse primeiro encontro. E, pelo menos nessse show, eles estão reconciliados e nos entregam o seu melhor.  

O CONCERTO - No início dos anos 1980, o Central Park Conservancy, organização sem fins lucrativos formada para encontrar uma solução para reconstruir e preservar o pulmão verde de Nova York, teve a ideia de um concerto para levantar fundos para o parque. Para isso, chamaram dois nova-iorquinos, Art Garfunkel, e Simon, nascido em Newark, região metropolitana da Big Apple, mas que desde jovem morou na cidade. Seria um grande show gratuito, com direitos de transmissão vendidos para a HBO, com lançamento de um futuro álbum em LP duplo no ano seguinte, com captação e direção geral de Mr. Michael Lindsey-Hogg.    

Os ensaios duraram três semanas. Pra variar, Paul e Art brigaram o tempo todo. Garfunkel queria recriam a ambiência dos shows da dupla nos anos 1960, apenas com violão, Simon queria algo maior, com banda. Paul estava certo, afinal, os anos 1960 tinham ficado para trás, o mundo mudara muito na última década. Na época, ele ainda estava com uma lesão no dedo, o que o impedia de segurar a bronca apenas com seu violão. Na verdade, ele já atuava naquele período em sua carreira solo de uma forma diferente dos anos 1960, e o dedo machucado era uma boa desculpa. Com isso, uma superbanda foi formada: David Brown (guitarra) e Pete Carr (violão e guitarra), Richard Tee (piano), Anthony Jackson (baixo), Rob Mounsey (sintetizador), Steve Gadd (bateria) e Grady Tate (percussão), além de um naipe de sopros avassalador com os trompetes de John Eckert e John Gatchell (trompete), e os saxofones de Dave Tofani e Gerry Niewood. Assim, nascia repertório, banda e arranjos de um dos concertos mais vitoriosos da história dos Estados Unidos, que segundo projeções teria atingido um público de cerca de 500 mil pessoas.   

Gravada em 19 de setembro de 1981, lançado em vinil em 16 de fevereiro de 1982, minha geração foi severamente impactada por esse LP duplo com 19 canções. Eu o conheci ainda na primeira metade dos anos 1980, e esse disco nunca deixou de rolar nos toca-discos da minha turma. O show em vídeo, primeiramente em VHS, depois em DVD, hoje, também está disponível por streaming e pode ser visto gratuitamente no Youtube. Pra mim, "Live in Central Park" é puro espírito daquela virada de década, ainda com resquícios dos anos 1960/1970. No setlist, dez temas da dupla, oito de Simon, um de Garfunkel, uma releitura de "Wake Up Little Susie" dos Everly Brothers e a versão medley de "Maybellene" de Chuck Berry. Cada um cantou três músicas sozinho, incluindo uma nova canção para cada um. Essa escolhas deram um novo sabor ao retorno, pois além dos temas conhecidos pelos discos da dupla, havia material novo. É um dos discos ao vivo que mais ouvi (sei as falas de cór), tenho um exemplar em CD, para ouvir no carro, e meu vinil, que nunca fica muito tempo na prateleira. Se você procurar resenhas nos sites gringos, verá que esse show não é uma unanimidade entre os críticos e fãs. Alguns criticam os novos arranjos de Simon, com prioridade das texturas do piano elétrico, o que eu não vejo problemas, por mais que essa preferência coloque uma âncora daquela virada de década, marca tanto do pop quanto do jazz daquele período. Outra estranheza está nos andamentos, mais rápidos que os originais, o que novamente não me oponho, pois acredito que muitas das releituras com essa banda selaram os clássicos com uma tinta diferente, o que nos motiva a ouví-las tanto em estúdio, quanto nessas versões ao vivo.            

MRS. ROBINSON

Sábado, 19 de setembro de 1981, fim de tarde em Nova York, tempo meio enferruscado naquele outono nova-iorquino. Qual seria o melhor lugar para se estar naquele dia? Imagine que mais de 10 anos depois de uma separação, Ed Kock, o prefeito da cidade, anuncia os nomes da atração principal, e lá estão Simon & Garfunkel, ao vivo, no coração verde da Big Apple, cantando "Mrs. Robinson", uma música que 14 anos antes lançou Dustin Hoffmann ao estrelato em "The Graduate" (1967), ou "A Primeira Noite de um Homem", como ficou conhecido por aqui. No elenco, ainda temos a maravilhosa Katherine Ross e, a não menos maravilhosa Anne Bancroff, a sedutora e maquiavélica Senhora Robinson, inciadora da vida sexual do jovem Benjamim Braddock e, também, sua algoz no romance com a filha dela, Elaine Robinson. "Mrs. Robinson" é a prova do quanto o folk rock pode ter a energia do rock and roll, tanto que nos anos 1990, ela voltou as rádios com uma versão dos Lemonheads, grupo de Boston liderado por Evan Dando. Não é apenas um ótimo começo para a abertura dos trabalhos, estamos falando de um senhor cartão de visitas para um show que está apenas começando. Eles estão bem, soltos no palco, doze músicos os acompanham, e ninguém diria que houve alguma espécie de rusga entre eles durante os ensaios. "Mrs. Robinson" também pode ver vista como um retrato instantâneo do final dos anos 1960, um extrato da vida americana que ainda soa atual no início dos 80, como um filme de Mike Nichols ou Sidney Pollack.                

HOMEWARD BOUND

"Homeward Bound" é dedicada a Kathy Chitty, uma funcionária do Railroad Hotel, onde Simon se apresentava em Brentwood, em 1964, em Essex, na Inglaterra. Paul a namorou por um breve espaço de tempo na épóca em que viveu na Inglaterra, após o fracasso do primeiro álbum de Simon & Garfunkel. Foi uma paixão avassaladora que colocou ela em três canções da dupla. "Estou sentado na estação de trem | Consegui uma passagem até o meu próximo destino | Numa viagem de uma noite | Só com minha mala e meu violão | E todas as paradas são estratégicas para um poeta e uma banda de um homem só". Isso é Paul Simon tocando como artista solo por Londres e outras cidades, já com saudades da garota que conheceu vendendo bilhetes para sua apresentação no Railroad Hotel. É uma música sobre a incerteza do amor, da necessidade de continuar seguindo em frente e da certeza que as boas lembranças são indestrutíveis. Um cusiosidade: Kathy Chitty e Paul Simon mativeram contato por um tempo, mas não seguiram com seu romance. Hoje, a mulher que inspirou Simon mora nos arredores de uma remota vila montanhosa no norte do País de Gales. Ela teve três filhos com seu parceiro, Kenneth Harrison, com quem ela está há mais de 40 anos.   

AMERICA

Ao final de "Homeward Bound", Simon faz a primeira fala da noite. "É um barato se apresentar aqui no bairro", diz arrancando risos da plateia. Ele agradece à polícia, ao corpo de bombeiros, à administração do parque e, quando menciona o prefeito Ed Koch, que os havia anunciado duas músicas antes, é vaiado por parte da plateia. Recupera o prestígio quando agradece "os caras que estão vendendo baseados avulsos". Daí começa "America", uma das canções símbolo da dupla (a Revista Roling Stone a elegeu como melhor canção deles), outra homenagem a menina Kathy que se espalhou pelos toca-discos, filmes e pela memória mundial. A letra descreve uma viagem de descobrimento de um casal pelos Estados Unidos. O escritor Pete Fornatale, que escreveu um ótimo livro sobre a geração Woodstock, diz que a letra é uma "metáfora para nos lembrar todas as almas perdidas vagando pelas estradas e atalhos da América de meados dos anos 1960, oscilando entre o desespero e esperança; o otimismo e a desilusão". Obra-prima.  

ME AND JULIO DOWN BY THE SCHOOLYARD

Lançado como sigle por Paul Simon em 1972, o ritmo festivo de "Me and Julio Down by the Schoollyard" entrou bem no repertório do Central Park. Na gravação original o brasileiro Airto Moreira toca cuíca, um pena ele não ser incluído nesse show. Simon inventou uma pequena narrativa e nomeou o personagem, Julio, um nome latino, pois, na sua visão, soava como um típico garoto do Queens, bairro onde ele cresceu. Esse trânsito, seja pelo caribe e pela América do Sul, envelopado numa letra malandra, causou um tremendo impacto nos ouvintes de língua espanhola. E não foi diferente no Central Park: "Me and Julio" também causou frisson no público durante o show, que colocou o esqueleto pra chacoalhar, com destaque para o naipe de sopros que empresta um colorido inigualável na parte final do tema.    

SCABOROUGH FAIR

A noite cai sobre Nova York, depois de toda a farra anterior, a maioria da banda sai de cena e ficam apenas os dois protagonistas no foco do holofote, puro Simon & Garfunkel sound, da maneira que Art Garfunkel queria fazer desde o início. O teclado de Rob Mounsey entra só na segunda metade da música, e o violão de Pete Carr (The Staple Singers, Wilson Pickett) também faz uma ponteada no final. A canção tradicional inglesa de domínio público, de autor desconhecido, tem origens remotas desde o ano de 1670. O nome "Scarborough Fair" é uma referência à feira de Scarborough, na Inglaterra da idade média, que era realizada anualmente entre os meses de agosto e setembro. O trecho em que eles cantam "salsa, sálvia, alecrim e tomilho" (Parsley, Sage, Rosemary and Thyme ) batizou o álbum de 1966 da dupla.   

APRIL COME SHE WILL

Art está no vocal principal, a banda continua fora de cena, essência acústica e a metáfora das estações pra falar de humores de uma garota, outra inglesinha que o eterno namorador Paul Simon conheceu na Inglaterra na época em que tentou a vida por lá, em 1964. As vozes combinadas da dupla criam uma ressonância única, uma digital poucas vezes alncançada nesse modelo que eles multiplicaram em suas músicas.         

WAKE UP LITTLE SUSIE

A banda volta e o rock and roll ancestral dos Everly Brothers, inspiração inicial dos meninos Paul e Art é revisitado com mastria pelo grupo. É como se eles, dentro de um espectro de restrospecto, pensassem que, seria impossível contar a história de Simon & Garfunkel sem falar dos Everly Brothers, uma dupla que, por exemplo, influenciou muito os dias inciais dos Beatles, bem no início, uma cartilha que outros tantos se debruçaram. A canção original, a 'Little Susie" de 1957, tiha apenas dois violões e um double bass. Aqui, com uma banda, esse espírito primordial permanece, não me parece desfigurado. É um belo tributo da dupla ao duo que deu o pontapé inicial em Tom & Jerry, ainda nos final dos anos 1950.        

STILL CRAZY AFTER ALL THESE YEARS

"Still Crazy" é uma balada com a gema das canções de Paul Simon, e é também seu primeiro momento solo da noite. Art fica mais ao fundo do palco, sentando no estrado da bateria, cantando trechos da letra fora do microfone, embasbacado com a rapaziada dos metais. O solo de Dave Toffani (George Benson, John Lennon) é o ápice do recorte instrumental. Os versos de Simon são emotivos, às vezes propositalmente escritos como poesia, sem deixar de ser simples, numa busca de um olhar contemplativo do indivíduo para uma situação ou para a sociedade.    

AMERICAN TUNE

"American Tune" é uma das minhas preferidas de Paul Simon, mais uma que vem da sua carreira solo para a voz inigualável de Art Garfunkel. É a "Working Class Hero" de Simon (em analogia à música de John Lennon), pois visiona a experiência americana à classe trabalhadora. Há referências à luta, ao cansaço, ao trabalho duro, à confusão e à saudade. Caso vocês não conheçam a versão de Willie Nelson que está em "Across the Borderline" (1992), convido-os a ouvir: é a única versão que faz sombra ao espectro das interpretações que envolvam o autor e sua "American Tune". Essa 'rebeldia comportada' das suas letras, quase profilática, o protesto solitário do indivíduo, as menções veladas às drogas e outros tabus, promovem um flerte com a contracultura, batendo na linguagem poética dos versos de Simon.     

LATE IN THE EVENING

Assim como "Me and Julio", "Late in the Evening" é outra aproximação de Simon com ritmos latinos e caribenhos, chance para novamente os metais brilharem e sacudirem a massa. Steve Gadd, que gravou a versão original em 1975, novamente toca com duas baquetas em cada mão, somada a percussão de Graddy Tate (Duke Wellington, Quincy Jones), que fazem esse momento o êxtase maior do público no Central Park, tanto que ela retornará no bis. A guitarra de David Brown (Billy Joel) também brilha nos intervalos entre as batucadas de Gadd e Tate, e antecipa o baile do quarteto de metais que fica no fundo á esquerda do palco. Essa intenção de Paul Simon em flertar com outros ritmos e países iria se ampliar em álbuns como "Graceland" (1986), "Rhythm of the Saints (1990) e "Songs from the Capeman". .         

SLIP SLIDIN' AWAY 

Paul Simon pela uma Fender Stratoscaster vermelha e puxa o riff de "Slip Slindin' Away". Sem as participações do metais, oito músicos tocam e a dinâmica acústica permanece, com as vozes sempre na linha de frente, as camadas de teclados por trás, as percussões sumindo e aparecendo. O que ocorre aqui passa muito pela linguagem daquele início de década, com sutis camadas de teclados e músicas que caiam sob medida para as FMs.     

A HEART IN NEW YORK

Paul Simon sai do palco e Pete Carr, no fundo, fora da luz, faz o dedilhado de "A Heart in New York" (Benny Gallagher, Graham Lyle), é o momento solo Art Garfunkel, que reprisa no Central Park a vibe easy listening de seus álbuns. Essa faixa abre "Scissors Cut", primeiro álbum solo dele dos anos 1980, lançado poucas semanas antes desse show.    

THE LATE GREAT JOHNNY ACE

Durante a primeira execução de "The Late Great Johnny Ace", música inédita de Paul Simon, um segurança impede um membro da platéia de correr em diração a Paul Simon, que gritou: "Preciso falar com você!" O invasor foi levado pelos seguranças e Simon terminou a música. O incidente provocou associações com a letra da música, na qual Simon fala como narrador em primeira pessoa sobre as mortes de Johnny Ace, John F. Kennedy e John Lennon. O assassinato de Lennon por um fã obcecado ocorrera menos de um ano antes desse show no Central park, não muito longe do local do show.

KODACHROME/MAYBELLENE

Parece o início de Mistery Train", "clássico da Sun Records gravado por Elvis e outros tantos nos anos 1950, mas é "Kodachrome", um dos maiores sucessos de Paul Simon nos anos 1970, que cai como uma luva nessa reunião da dupla. A letra traz recordações de um mundo feliz e colorido. "Kodachrome" fala dessa ambiguidade em que muitas vezes as recordações são pilulas de felicidade em tempos difíceis. Esses fotogramas, trechos sem uma moldura específica, encontra da câmera memorial de Simon a voz para eclodirem na letra. A Kodachrome, que é uma marca de propriedade da Kodak, pediu ao autor da música que citasse isso no álbum e também incluísse um marca registrada (®) após o título da música. Feliz da Kodak, que mais tarde ainda usaria a música em comerciais de televisão promovendo sua marca. E assim como em "Wake Up Little Susie", que relê um dos clássicos dos anos 1950, novamente eles retornam ao mesmo cesto, agora pinçando um standard de Chuck Berry, "Maybellene", que entra como medley no final de "Kodachrome". 

BRIDGE OVER TROUBLED WATER

Se você quiser mostrar para alguém as virtudes de Art Garfunkel como vocalista, mostre "Bridge Over Troubled Water". O pianista Richard Tee (Bob  Marley, Dizzy Gillespie) traz a cama nas teclas e Art faz a arte acontecer, a mágica que brilha em sua voz com o um dos grandes intértretes do nosso tempo. Primavera de 1969: Bobby Kennedy e Martin Luther King se foram - assassinados. Tensões raciais contínuas nos EUA. A guerra no  Vietnam. Cantor e compositor sensível, Paul Simon olha pela janela do seu apartamento em Nova York, e pensa nas linhas de abertura que tinha composto: "Quando você estiver exausta / Sentindo-se insignificante / Quando as lágrimas estiverem em seus olhos / eu vou enxugar todas elas". O que surge dessa criação se aproxima do gospel, vem das quebradas do blues, é uma balada fatal, a mais mortal delas, que fez Elvis cair de quatro e gravá-la no mesmo ano em que Simon and Garfunkel colocaram ela como single nas prateleiras, em 1970. No Central Park, Art resgata tudo que há nessa canção: dor, sofrimento, superação, amor, conforto, e faz de "Bridge Over Trobled Water" a grande apoeteose emocial na noite.            

50 WAYS TO LEAVE YOUR LOVER

Gravada logo após o divórcio de Paul com Peggy Harper, em 1975, "50 Ways do Leave Your Lover" foi inspirada numa canção de amor de 1917, tema do compositor dinamarquês Carl Nielsen. Um ano depois Paul Simon se casaria com Carrie Fischer, a futura Princesa Leia de "Star Wars". O riff de bateria que puxa a corda, com Steve Gadd abrindo sua caixa de ferramentas. Essa batida é o fio condutor que toda a música foi construída. O andamento de balada no início sobe o tom logo depois dando ares de rock and roll.  

THE BOXER

A impresão de quando ouvimos a versão de "The Boxer" no Central Park é que o tempo não passou para a dupla nova-iorquina. Tudo continua inalterado, e graças ao bom Deus a bateria com excesso de reverber no refrão não está aqui. A canção fala da velha luta dos jovens vindos do interior, distantes da família e ralando na cidade grande. E também traz um boxeador, que porrada após porrada pensa em desistir do ringue. Mas apesar de todo o sofrimento, ambos continuam em frente, compartilhando de sentimentos de esperança. Se eles saíssem do palco e não mais voltassem, ninguém iria reclamar. Mas eles voltariam, pois haviam outras pérolas a serem ofertadas.      

OLD FRIENDS

Eles voltam sem a banda, apenas o violão de Simon faz o serviço. O bis começa com "Old Friends", uma viagem no tempo, como se Simon e Garfunkel fosse velhos amigos refletindo sobre o passar dos anos, a estranheza de chegar ao fim da linha, o ocaso da existência. Lembrando que tanto Paul quanto Art estavam nos 40 anos (Art completaria em novembro), o tema é extraído de "Bookends" (1968), e no show marca esse recorte final com o retorno a essência acústica da dupla.  

THE 59th STREET BRIDGE SONG

Eles seguem no folk do final dos anos 1960, uma ode a vagabundagem ao estilo do poeta Gregory Corso que diz: "Estar na esquina á espera de ninguém é poder". Já Paul Simon fala: "Olá, poste de luz | Me diga alguma coisa? Eu vim para assistir suas flores crescendo". Ao vê-los ao vivo, dá pra perceber que não há um único traço de tensão, eles estão em casa, relaxados, num caso de amor com seu público. A noite está prestes a acabar...    

THE SOUND OF SILENCE 

Curiosamente, nos últimos dias começou a circular uma história sobre “The Sound of Silence”. Essa fake news eu recebi por alguns amigos no famigerado WhatsApp, em que um texto (sem fontes) diz que a música foi composta em homenagem a Sandy Greenberg, um amigo de Art Garfunkel que ficou cego - uma história tocante, mas que conflita com o depoimento do autor da música, pois nessa mensagem é dito que Art escreveu a letra. Como sabemos, a letra é de Paul Simon. “E na luz fraca eu vi/ Dez mil pessoas, talvez mais/ Gente conversando sem falar/ Pessoas ouvindo sem escutar/ Gente escrevendo canções que jamais serão cantadas/ Ninguém ousa/ perturbar o som do silêncio”. Simon declarou que a música fala sobre solidão e a falta de comunicação. Um detalhe: "The Sound of Silence", um folk rock essencial, definidor dessa linhagem de canções, foi escrita logo depois da morte do Presidente Kennedy, o que alguns relacionaram a música, fato negado por Simon. 

É o grand finale da noite, que ainda traria como coda a volta da banda e uma nova execução de "Late in the Evening", e tudo acabou numa inesquecível festa, imortalizada em vídeo pelo bom e injustiçado Michael Lindsey-Hogg. Graças aos céus. 

Veja o show completo - sem interrupções - no player abaixo. 

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