Neil Young: os 50 anos de "Harvest"

Neil Young e sua foto em Harvest. Foto: Joel Berstein 

Por Márcio Grings

A inspiração inicial de “Harvest” é o country. Boa parte do LP foi gravado em Nashville, um cenário dissonante de Los Angeles, de onde o canadense Neil Young vinha. As diferenças não eram apenas musicais, eram políticas. No início dos anos 1970, Young era visto como um membro da contracultura hippie. Ele tinha composto “Southern Man”, uma música que mete o pau nos estados do Sul dos EUA e na tradição sulista de racismo e segregação. Os hippies eram contra o establishment — a música country era o establishment. No Sul, homens de cabelos compridos corriam risco de apanhar na rua. Portanto, abraçar a música country era uma atitude corajosa para os músicos ligados ao rock. Lembre-se: alguns artistas tinham aberto essa porta antes, entre eles Bob Dylan e The Byrds.

Veja a live dos 50 anos de "Harvest" pelo Piatadas do Sal 

No mundo do rock, pelo menos na época em que foi lançado, para muitos, “Harvest“ soava e ainda soa inofensivo demais, suave demais, pop demais, porque o Neil Young real é praticamente uma oposição ao seu álbum mais conhecido. “Harvest” é menos confessional do que “On The Beach”, o melhor dos álbuns de Neil Young, o disco maldito que hoje é celebrado como obra-prima; é menos emotivo do que “Tonight’s the Night”, um disco sem polimento, sem orquestrações, mas verdadeiro até a medula; é mais leve e suave do que “Rust Never Sleeps”, este sim um LP de Neil Young que entrega quem ele realmente é. Contudo, “Harvest" está longe de ser insípido, mesmo que seja inferior ao seu disco coirmão, "Harvest Moon", lançado 20 anos depois.

Em retrospectiva aquele período, com as costas severamente debilitadas, em 1971, Neil Young precisou operar uma hérnia de disco. Assim, largou um pouco a guitarra e olhou mais para o violão. Depois de um tempo de resguardo, que na verdade foram meses de cuidados pós-operatórios, ele fora convidado para participar do programa de Johnny Cash, noite em que apresentou na TV duas canções acústicas, só ele eo violão. Lá se encontrou com Linda Ronstadt e James Taylor, duas estrelas em ascensão naquele ano. Ao final, o trio foi jantar com Elliot Mazer, um nova-iorquino que vivia em Nashville, proprietário do Quadraphonic Sound Studios. Mazer tinha acabado de produzir no seu estúdio um álbum da banda Area Code 615, grupo montado com um timaço de músicos de Nashville que devolvia a bola que os Byrds, em “Sweetheart of the Rodeo” (1968), e Bob Dylan, em “Nashvile Skyline” (1969), tinham jogado poucos anos antes. No disco de estreia do Area Code, eles revisitam canções do próprio Dylan, dos Beatles, entre outros. Durante o jantar com Mazer, Young, que conhecia o álbum do AC615, pergunta ao produtor se os músicos daquela gravação estariam disponíveis para participar de uma sessão. Dois estavam: David Briggs (piano) e Kenny Buttrey (piano). Outro dois, Weldon Myrick (pedal steel), e Norbert Putnam (baixo), não tinham espaço na agenda. Mazer recomenda o baixista Tim Drummond e Ben Keith, músicos que se tornariam grandes colaboradores de Neil Young.  

Neil e os Stray Gators. Foto: Joel Berstein

Após combinarem gravar algumas novas canções no Quadraphonic, Neil ainda arrastou Linda Ronstadt e James Taylor com ele. Em dois finais de semana, quatro músicas seriam registradas. Juntando com outras duas canções gravadas em Londres meses antes, com a London Symphonic Orchestra, Neil começou a entender que um novo álbum havia surgido. Com isso, cancelou os planos de lançar um álbum ao vivo (sobrou uma, incluída em Harvest) e reuniu a mesma banda de Nashville no seu rancho em La Honda, com adição de Jack Nitzchie, parceiro de Neil desde o Buffalo Springfield. Recuperado de suas dores nas costas, resolve gravar mais algumas canções com outra abordagem, agora orientados pelo rock and roll.  

As canções de “Harvest” foram gravadas ao vivo, com poucos takes, sem compressão, gerando um resultado amplo, aberto. “Harvest” não é uma obra de arte, longe disso, pois é um disco incostante, mas muito bom, mesmo que todas as faixas não sejam clássicos. Há baladas com inspiração country (Out on Weekend, Harvest, Heart of Gold); uma música caipira da gema (Old Man); um quase blues (Are You’re Ready For the Country); e um quase rock (Words); e um rock and roll vitorioso (Alabama). As extravagâncias orquestrais causaram uma estranheza inicial (A Man Needs A Maid e There’s A World); além de um um folk sombrio (The Needle and the Damage Done).  

Gravando Harvest no Broken Arrow. Foto: Joel Berstein

Quando “Harvest” foi lançado, em fevereiro de 1972, “Nashville Skyline”, de Bob Dylan, havia agido como a pedra no lago. Assim, quando o disco de Neil Young caiu nas lojas, as ondulações já tinham se espalhado, o country era o gênero da moda e o canadense sortudo colheu os frutos desse pioneirismo de de seu colega de trabalho. Contudo, não estamos falando de um contry caricato, arremedatório (o que ele faria 13 anos depois, em Old Ways). "Harvest" apresenta um conjunto de temas originais, inovadores, e, é justamente por essas virtudes, que estamos falando dele 50 anos após seu lançamento.  

OUT ON WEEKEND

No Rio Grande do Sul, quando alguém vai passar um tempo num lugar remoto — um final de semana, por exemplo — é comum ouvirmos a expressão “ir pra fora”, que ainda tem uma intenção de busca por sossego e de contato com a natureza. Assombrado por um amor perdido, Neil Young faz as malas e vai ‘pra fora” em busca de seu retiro em “Out on Weekend”. Há resignação, exaustão, melancolia e tristeza, mas também uma certa esperança em renovar as baterias e voltar mais forte. O desempenho dos Stray Gators dá o tom de sua atuação no álbum, como coadjuvantes, uma simplicidade que não teríamos se a banda aqui fosse o Crazy Horse ou Crosby, Stils, Nash & Young. E assim, ouvimos uma linha de baixo com apenas duas notas, uma levada simples e reta de bateria, a simplicidade do violão de Neil Young amarrando tudo, além de uma melancólica gaita de boca, definições predominantes do álbum. Há espaços vazios entre os instrumentos, e o pedal steel de Ben Keith parece acentuar a presença desses buracos. Era esse o tom do álbum buscado por Neil e Eliott Mazer – nada de firulas e muito pouco de virtuosismo.

HARVEST

A melancolia segue. Inegavelmente obscura, a faixa título parece ter sido inspirada na família de Carry Snodgress, mulher de Neil Young na época. Sua sogra tinha tendências suicidas, e isso está refletido na letra. Há também um recado de um amor não correspondido, de uma menina que tem muito a oferecer, mas de um jovem disposto a ceder apenas um pedaço de si, incapaz de retribuir na mesma moeda. A música mais country do álbum traz novamente o baixo de Tim Drummond e o pedal steel de Ben Keith para o centro das atenções. É uma música polida, alinhada ao soft rock. Ao piano, John Harris, pianista de Nashville, faz sua única participação no disco, dedilhando com seu estilo honk-tonk. O baterista Kenny Butrey toca com apenas uma das mãos, usando apenas bumbo e caixa. Butrey, que tocara com Dylan, acabou por ser o baterista perfeito para as sessões, sintonizado com Neil, captando a dinâmica das canções, dando-lhes vida.   

Foto: Joel Berstein

A MAN NEEDS A MAID 

O turbilhão de cordas arranjadas por Jack Nieztche apresenta uma dinâmica semelhante as orquestrações utilizadas nos filmes, com ênfases ao estilo de um melodrama. É uma canção pop embalada numa peça orquestral, com peso emocional que dá uma quebra no início folk-country. “Eu estava vendo um filme com um amigo / E me apaixonei pela atriz / Ela interpretava um papel que eu não conseguia entender" Autobiográfico, Neil fala de Carrie Snodgress, que se tornou sua esposa,  estrela do filme “Quando nem um amante resolve” (1970), link direto com a  letra de “A Man Need’s a Maid”. Gravada na Inglaterra, na prefeitura de Barking, com apoio da Orquestra Sinfônica de Londres, com arranjos de Jack Nietzche, Neil fala da um homem que afirma precisar de um empregada. Como assim? Seria mais assertivo dizer que o envolvimento emocional desse enfermo com a pessoa contratada para ajudá-lo (ou convidada por ele para viver ao seu lado), de algum modo desenvolve um amor platônico. Na verdade, quando nos aprofundamos no sentido do que foi escrito podemos concluir que ele não fala do poder do homem, mas da fraqueza masculina. Após uma cirurgia na coluna, quando o músico se mudou para La Honda, na região de San Francisco, onde comprou o rancho Broken Arrow, ele ficou fora de cena durante uma boa parte de 1970, quando ficava apenas 4h em pé durante o dia, e deitado na cama por outras 20h. 

HEART OF GOLD

A única música de Neil Young a chegar ao topo das paradas, n° 1  em 1972, tem vocais de apoio de James Taylor e Linda Ronstadt. Bob Dylan disse certa vez disse que achava “Heart of Gold” muito parecida com suas músicas, como se o colega conscientemente quisesse imitá-lo.  A música traz a busca por um coração puro e virtuoso, escrita por um jovem de 24 anos que já se sentia um homem velho. Dois violões estão gravados na base, um, o de Neil, e o outro, o do músico de Nashville Teddy Irwin (não creditado), que pode ser ouvido no canal esquerdo. É a música perfeita, sem nenhuma nota desnecessária.  

ARE YOU’RE READY FOR THE COUNTRY

Apesar da countryficação, “Are You’re Ready for the Country” (você está pronto para o country?) não é uma música country, pois o que ouvimos se aproxima mais um blues improvisado. Gravada no rancho de Neil, Jack Nietzche não é um guitarrista, mas a pedido de Neil toca uma guitarra slide desajeitada. Outra música que joga luz na vida do Sul dos Estados Unidos, aqui ele não fala de direitos civis ou ódio racial. “O campo é um lugar sinistro e perigoso”, ele diz, meio insinuando um terror indefinido, quase gótico. Outro detalhe está na polissemia da palavra country, que além de nos jogar no gênero musical, também pode se referir a campo, interior ou país. David Crosby e Graham Nash estão nos vocais de apoio. “Are You’re Ready for the Country” soa como uma demo inacabada, como um esboço que não foi trabalhado, mas de forma intencional dá o tom da impulsividade do compositor em transformar esses rascunhos em canções gravadas.    

1971, Neil Young no seu rancho, durante as gravações de Harvest. Foto: Joel Berstein 

OLD MAN

“Old Man” é folk, country e pop, e finca raiz na proprieda de Broken Arrow, a propriedade que Neil comprou no norte da Califórnia. A letra homenageia Louis Avila, o caseiro do rancho. Louis perguntou a Neil como um sujeito tão jovem poderia ter tanto dinheiro. O músico tinha 24/5 anos quando se mudou para lá. Neil e Ben Keith dobram algumas notas no banjo e violão, o que dá um efeito genial. É um de seus maiores triunfos como compositor, desde o desempenho preciso como instrumentista, mas também como vocalista. Linda Ronstadt e James Taylor estão nas vozes de apoio (Taylor ainda toca banjo), Andy McMahon está no piano (não creditado). Ao traçar um paralelo sobre vidas distintas, o artista traz uma reflexão sobre o envelhecimento, fala do conflito geracional: “Eu sou muito parecido contigo”. Na vida real, Neil e Carrie abandonaram a badalação de Topanga Canyon, em Los Angeles, e se isolaram no rancho em La Honda. Neil Young é epilético, e por isso temia as multidões, com medo de que elas presenciassem seus ataques.

THERE’S A WORLD

Gravada na Inglaterra, na mesma sessão de “A Man’s Need a Maid”, muitos consideram as orquestrações de “There’s A World” a única questão de mérito nela, e outros tantos afirmam que essa talvez seja uma das piores músicas de Neil Young. Billy Walker, da Sounds, sintetiza esse sentimento, quando diz que “There’s a World” parece uma canção da trilha de “Ben-Hur”. "Mas se pensarmos dentro de um espírito de álbum", com nos lembrou Romero Carvalho na live do Pitadas do Sal, "faz todo o sentido. A letra é transcendentalista".   

Foto: Joel Berstein
ALABAMA

David Crosby e Graham Nash estão nas vozes de apoio. Das canções políticas de Neil Young, entre elas “Ohio” (single com CSNY), e Southern Man (de After Gold Rush),”Alabama” é o momento de rock and roll em “Harvest“. Se em grande parte do disco os Stray Gators são reflexivos, sutis, elegantes, contidos, em “Alabama” eles soltam a mão e revelam sua força. Neil toca com uma guitarra Gretsch Falcon de corpo oco, adquirida numa troca com Stephen Stills. O que ouvimos no disco se espalha por todo o campo estéreo, com graves do canal esquerdo e agudos no outro canal (o que as vezes passa a impressão de termos dois guitarristas). O refrão matador, os backings de Stills e Crosby, o debate político da defasagem do estado do Alabama sobre questões humanistas, fazem de “Alabama” um clássico.

THE NEEDLE AND THE DAMAGE DONE

Neil Young em ritmo e técnica impecáveis, só ele e seu violão. Gravada no Royce Hall, na Universidade da California, em Los Angeles, “The Needle and the Damage Done” fala do pesadelo no vício em drogas e do lado negro no seu consumo. A canção é dirigida a Danny Whithen, guitarrista do Crazy Horse, e faz menção ao uso de injetáveis. Tem uma parte da letra que diz: “Tirar um pouco de sangue pra não ficar sem”, que se refere uma prática comum entre os viciados em heroína, de extrair o sangue alterado pela droga para reinjetá-lo. Meses depois dessa gravação, Neil Young comprou para Whitten uma passagem de avião com destino a Los Angeles, deu a ele 50 dólares e o mandou embora. Tinha acabado de o demitir da própria banda que criou. Danny não pegou aquele voo e gastou o dinheiro em drogas. Teve uma overdose e morreu naquela noite no banheiro de um amigo. Neil nunca se perdoou. A frase final, cortada bruscamente por uma chuva de aplausos, quando diz — “Todo viciado é um som poente”, para muitos uma alegoria poderosa (no sentido do brilho que se apaga), também pode soar como uma metáfora infeliz, afinal, o sol poente é uma dos grandes espetáculos da natureza. De todo o modo, “The Needle and the Damage Done” passou a ser um de seus cavalos-de-batalha mais utilizados nas apresentações acústicas, com justiça, diríamos, pois é um de seus momentos mais vitoriosos nos anos 1970.  

WORDS (BEETWEEN THE LINES OF AGE)

Os aplausos dos estudantes da Califórnia são interrompidos pela zoeira inicial de “Words”. A letra é obscura, carregada de simbolismo, um quebra-cabeças com peças desaparecidas. A canção fala da tentativa do músico em levar uma vida normal, o que não é fácil para um rosto conhecido por milhões de pessoas. Stephen Stills e  Graham Nash fazem as vozes de apoio. É uma música maçante, arrastada, com quase sete minutos. Assim como "Are You're for the Country", também se assemelha a uma demo, meio jam, ou como uma canção do Grateful Dead, sem nenhuma pressa para terminar, caótica, irregular, mas que faz todo o sentido nesse fechamento de um álbum clássico. E que clássico é "Harvest".   

Foto: Joel Berstein

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