Led Zeppelin IV, 50 anos de um dos Himalaias do rock mundial
Divulgação |
Por Márcio Grings
Outono de 1985, eu vou falar sobre um garoto de 14 anos, deveria ser março ou abril, ele saiu de casa rumo a uma loja de discos. Estava decidido a comprar “Jailbreak” (1984), um EP com gravações do grupo australiano AC/DC, feitas 10 anos antes. Tinha acabado de vê-los pela TV, em fevereiro, durante o Rock in Rio. Quando sai da loja, que era a saudosa Bobbysom, localizada bem centro da cidade, no Calçadão de Santa Maria - RS, viu um poster gigante anunciando uma exibição: “A Canção Continua A Mesma”, filme de um certo Led Zeppelin, com sessões agendadas naquela semana no Telão 52 (acredito que o 52 se referia as dimensões da tela em polegadas), uma sala de projeção bem perto dali, na quadra de trás, na Rua Alberto Pasqualini.
Reprodução do poster da Revista Somtrês |
O Led Zeppelin em ação |
Seria George Pickingill o velho ranzina da capa de Led IV? |
Daí, semanas depois, compra seu vinil do “Led IV”, o disco de “Stairway to Heaven”, claro, a música que o deixara boquiaberto naquela tarde no Telão 52. Contei toda essa história para chegar no seguinte ponto: o quarto LP do Led Zeppelin é certamente um dos discos que mais ouvi, e lá se vão 36 anos! Monumental, canônico, mitopoético, simbólico no conceito de luz e sombra, há peso de sobra, mas também há momentos acústicos. Alguém tem dúvida de que estamos falando de um dos Himalaias do rock feito nos anos 1970?
O disco possui vários selos de originalidade, a começar pela capa,
sem nenhuma nomeação. Há também a simbologia dos criptogramas que representam
os integrantes. O
velho rabugento que nos encara, curvado por um feixe de lenha às costas é uma
figura intrigante. Na contracapa, percebemos uma cena urbana de uma cidade
qualquer, quando então entendemos que o ancião é um símbolo do passado, fixado
num quadro. No encarte, numa tipografia específica, lemos a letra de “Stairway
to Heaven”, um dos principais grimórdios do Led. Ao lado do texto, um homem de
cartola lê um livro. O velho eremita com uma lanterna na parte interna da capa
é um símbolo enigmático que reaviva a imagem de Jimmy Page em “The Song Remais
the Same”. Jimmy, o feiticeiro mais famoso da música mundial, que idolatrava outro
bruxo, Aleister Crowley. Será que ele sabe de algo que não sabemos?
Headley Grange, antigo hospício transformado em estúdio |
O mágico e astrólogo John Dee e o homem de cartola no encarte do LP |
Confira abaixo um faixa a faixa do disco.
BLACK DOG
O disco mal começa a rodar e você já houve um animal arfando. Será
o cachorro preto do título? Pode ser o espírito do labrador que rondava Headley
Grange, um antigo hospício onde parte do disco foi gravado. Esses gemidos iniciais,
talvez na visão de Jimmy Page, mestre das sobreposições, sejam os rosnados iniciais do exército
de guitarras. A música funciona como um chamado e resposta entre
Plant e os instrumentistas. A ferroada do marimbondo nos pega tanto pelo som da banda quanto
pelos gemidos de Plant. A melodia tem inspiração em “Oh Well”, do Fleetwood
Mac, uma música de 1969, do álbum “Then Play On”. Já o riff, criado pela
baixista John Paul Jones, é chupado de uma parte de “Tom Cat”, música de Muddy
Waters que está no álbum “Electric Mud” (1968). Jimmy ligou a guitarra no canal
do microfone da mesa de áudio, passando depois por dois compressores. E aí está
o cálix do Led Zeppelin: eles transformam o blues em outra coisa, não se
preocupam em manter as estruturas do gênero dentro de uma redoma. Na letra, o
desejo sexual surge como uma possessão, uma assombração. Por outro lado, não há
uma demonização do poder sexual da mulher da 'Big Legged Woman', mas um alerta para a própria luxúria
do homem. “Olhos que vibram | Vermelho queimando | Sonhos com você na minha
cabeça | Mulher de pernas longas”.
ROCK AND ROLL
O Led sabia como transformar o volume numa entidade. E tudo começa
pelo riff de bateria de John Bonham, colado de “Keep A Knocking” (1957), uma
música de Little Richard. Quem influenciou Bonzo é Charles Connor (falecido no
último mês de julho), que também atuou como instrumentista de James Brown. “Rock
and Roll” é um dos números de estrada preferidos do grupo, e uma de suas
essências emocionais e homenagem escrachada ao rock dos anos 1950, Terra
do milk-shake. A letra é Robert Plant morrendo de saudades da estrada. Destaque
para Ian Stewart, session musician dos Rolling Stones, que toca piano em “Rock
and Roll”.
THE BATTLE OF EVERMORE
Mal acaba “Rock and Roll”, e ouvimos o chipô da bateria soando como se
fosse uma garrafa quebrada. Direto da era do milk-shake, somos içados, sem
escalas para o vórtice de um fade in enigmático, teletransporte para a ambiência do hidromel, da Terra Média, do “Retorno do Rei” de J.R.R. Tolkien. Como é possível essa ligação tão incoerente soar como uma transposição tão precisa? Saem as guitarras,
entram os bandolins. Há cinco presenças femininas em “Led IV”. Uma delas é Sandy
Denny, do Fairport Convention, única artista a dividir o protagonismo de
vocalista com Robert Plant, não apenas nesse trabalho, mas em toda a
obra do Led Zeppelin. Evoca-se a mitologia celta e a Rainha da Luz representada
por Sandy, que faz o contraponto de reforçar o que é dito por Robert. “The Battle of Evermore” é
uma música subestimada no contexto do álbum, muito provavelmente por ser a
predecessora de “Stairway to Heaven”, mas cresce de tamanho a cada audição. Uma
espécie de Dia do Juízo surge na letra, e esse conflito entre as forças do bem
e do mal nos acompanhará até os momentos finais no Lado B.
STAIRWAY TO HEAVEN
Uma música com mais de 5 milhões de execuções apenas nas rádios
americanas não pode ser subestimada. Só pelos arquivos da memória de muitos de
nós, “Stairway to Heaven” pode ser tocada mentalmente em milhões de mentes. Estamos
falando de um madrigal elizabetano, de um dos hinos internacionais do rock, a
quintessência da feitiçaria comercial do Led Zeppelin. A introdução é feita
numa guitarra Harmony, a sessão rítmica numa Fender de 12 cordas, e os riffs
finais numa Les Paul 1959 que Jimmy Page ganhou de Joe Walsh, guitarrista do
James Gang e do Eagles. Em todas as partes há sobreposições com um violão de aço
com seis cordas. É o famoso exército de guitarras/cordas em ação. Ao vivo ele
executava toda sua elegia numa Gibson EDS-1275 dois braços, como vemos no filme,
com aquele final ribombante. A letra de
Plant é um texto em aberto, sujeita a múltiplas interpretações, repleta de ambiguidades. Temos o retorno da terceira presença feminina, a May Queen, a Rainha da Luz, que surge pela segunda
vez no álbum. Ela voltará... O flautista citado na música representa essa
dualidade (Flautista de Hamelim, dos irmãos Grinn; Pã, da mitologia grega?). Há
acusações de plágio, seja pela semelhança com “Taurus”, de 1968, música do
Spirit, e algumas partes por “And She’s Lonely”, da Chocolate Watch Band. Pura
bobagem! Há ainda a famosa das lendas urbanas envolvendo a música — sobre as supostas
mensagens satânicas ouvidas quando o disco é rodado ao contrário. Outra
baboseira. O que ninguém pode negar é o fato de “Stairway to Heaven” ser uma aplicação
resoluta do termo “Sturm and Drang” (tempestade e ímpeto), pois estamos falando
de um dos Montes Rushmore da música feita nos anos 1970. Segundo o jornalista mineiro Romero Carvalho, "Stairway to Heaven é um resumo conceitual da proposta mística do álbum", um poderoso avatar que concentra toda a energia vital do Led Zeppelin (assista acima a live entre Sal Jr, Romero Carvalho, e quem escreve estas linhas via Pitadas do Sal).
MISTY MOUNTAIN HOP
Pense sobre isso: de certa forma, as quatro músicas do Lado B são
um espelho rudimentar do Lado A, e se “Black Dog” traz um certo mistério na
figura da “Big Legged Woman", já no início da face oposta, a festiva “Misty
Mountain Hop” novamente se inspira em Tolkien, agora com laços alegóricos ligados
à nação hippie, numa batida policial atrás de drogas — “Nem tudo que brilha é
ouro. Nem todos que vagueiam estão perdidos”. O riff de Jimmy Page nos faz
lembrar de uma frase de Frank Zappa: “Enquanto saxofones podem ser vulgares,
somente guitarras pode ser obscenas”. Felizmente,
em relançamentos recentes de “The Song Remains the Same”, a versão de "Misty Mountain Hop" de um dos shows no Madison
Square Garden em 1973 veio à luz, pois trata-se de um dos grandes momentos ao
vivo do Led Zeppelin. Destaque para John Paul Jones, esmerilhando um teclado Fender
Rhodes.
FOUR STICKS
Four Sticks” (quatro baquetas) é batizada pela opção de John
Bonham em tocar de uma maneira pouco usual, com quatro baquetas, isso após uma
noitada em que assistiu um de seus bateristas favoritos, Ginger Baker. É quando
temos uma guinada para o lado oriental da força, pois “Four Sticks” busca o
ambiente exótico das forças modais, partindo da ideia inicial de Page em fazer
um raga oriental, algo que ele alcançaria excelência quatro anos depois, em “Kashmir”.
A letra é enigmática: “Entre os pinheiros | Onde o sol nunca brilha | Sentimos
um calafrio quando o vento frio sopra”. A canção é a Noite de Santa Valburga de
“Led IV”, pois é um tema pagão que enxota os espíritos malignos para novamente
invocar a Rainha da Luz, e essa grande fogueira que nos liberta dos grilhões
nefastos se chama “Going to California”.
GOING TO CALIFORNIA
A jornada mística de “Going California” encontra inspiração na quarta força feminina de “Led IV”, Joni Mitchell. Robert Plant revela aqui sua devoção
para as canções da cantora canadense, principal manancial de uma das grandes
baladas do grupo. Também vejo ligações com o som de Neil Young e folk rock de Crosby,
Stills & Nash. “Going to California” é o paraíso dos dedilhadores, algo que
mixa Estados Unidos e Grã-Bretanha, algo entre Merle Travis e Bert Jansch.
Ouvimos dois violões separados por terças, o que forma o lar espiritual da ambiência
acústica iniciada em “Led III” e que alcança seu apogeu no "Led IV". É ainda em
“Going to California” que percebemos que a Rainha da Luz de ‘Evermore’ e ‘Stairway’
(ou seria a enigmática Big Legged Woman) nos passou a perna: “Desperdicei meus
dias com uma mulher impiedosa | Ele fumou meus cigarros e bebeu todo o meu
vinho | Decidi começar tudo de novo | Partindo para a Califórnia com meu
coração dolorido”.
WHEN THE LEEVE BREAKS
Com sua mão de martelo, o som de bateria dos anos 1970, quanto ao
padrão de gravação, foi definido em “When the Leeve Breaks”. Dois microfones de
ambiência e nenhuma captação no bumbo, com a ajuda fundamental da ambiência
natural de Headley Grange. É única guitarra (e que guitarra!) gravada em Headley
Grange (Fender de 12 cordas com afinação em sol aberto), que entrou no álbum (as
outras foram gravadas em estúdios externos). É também a única mixagem feita no
Sunset Sound, em Los Angeles que ficou no álbum. Todas as outras foram
remixadas por Jimmy Page em Londres, no Island Studios. A inspiração vem de um
antigo blues da década de 1920, gravado por Memphis Minnie, a quinta força
feminina do álbum. Só que essa mania de transformar o blues em outra coisa
ganha dimensões estratosféricas em “When the Leeve Breaks”, que fala de uma enchente devastadora ocorrida em 1927 no Sul nos Estados Unidos, e que deixou milhares
de mortos e 600 mil desabrigados. O chamado para o juízo final na faixa derradeira de “Led IV”
precisa ser ouvido em alto e bom som ou com um poderoso fone de ouvidos, pois só assim podemos perceber que tudo na música se movimenta na parte final, num
ambiente pantanoso, úmido e sombrio, só o vocal fica no mesmo lugar, como
um guia espiritual que nos salvaguarda até a os instantes finais do disco.
............
ALGUMAS CURIOSIDADES
O Eremita |
Aleister Crowley |
- Da mesma forma que Mark David Chapman foi encontrado com uma cópia de “Apanhador no Campo de Centeio” após assassinar John Lennon ou de Charles Manson afirmar ter encontrado mensagens subliminares em “Helter Skelter” e “Piggies”, antes de assassinar a atriz Sharon Tate, o ocultismo por trás de “Led Zeppelin IV” não pode ser levado tão a sério. Há um livro escrito por Thomas W. Friend que disseca esse tema, levantando inúmeras lebres, mas há também muita paranoia envolvida. No livro, ele diz que ‘Stairway to Heaven” é na realidade “Stairway to Hell”, apresentando vários exemplos de supostas mensagens diabólicas quando o LP gira ao contrário no toca-discos: “Mestre Satã, sirva-me” – “Não há como escapar”, entre outras missivas. Robert Plant diz que tudo isso não passa de uma imensa besteira. Perguntado numa entrevista se os membros da banda havia feito um pacto com o diabo, ele disse: “o único pacto ou acordo que fizemos foi com algumas garotas da Califórnia”
Comentários
Postar um comentário