Carta Aberta dos agentes da Cultura à Prefeitura de Santa Maria: "Bombril", Plano e Fundo de Cultura Já!

Foto: Dartanhan Baldez Figueiredo



O descaso dos últimos governos com a gestão cultural de Santa Maria acabaram com a paciência de quem faz cultura por aqui. E se não fosse pela resistência e iniciativa de alguns produtores e artistas locais, o cenário poderia ser ainda mais desolador. Com a intenção de sugerir uma pauta inicial de ações para o governo na área cultural, alguns promotores culturais resolveram publicar uma carta aberta endereçada ao novo Prefeito Jorge Pozzobon e também a Secretária de Cultura Esporte e Lazer do Município. 

A carta, que já contém várias assinaturas, pede a reabertura do Bombril e a revisão do Plano e Fundo de Cultura, além de outras reivindicações. Alguns sinais de alerta foram deflagrados nos últimos meses, apontando para um renovado escanteamento da cultura para a grande massa, seja pela redução das editorias de cultura dos jornais locais ou até mesmo pela fusão das Secretarias de Cultura/Esporte e Lazer. 

No entanto, o Prefeito e a Secretaria de Cultura abriram a porta para o diálogo e alguns promotores e agentes culturais foram até o prédio da antiga SUCV (atual sede da Secretaria), local onde ocorreram os encontros. Houve uma primeira reunião no dia 7 de Janeiro e um novo debate na manhã desta segunda-feira (13), onde a Secretária Marta Zanella recebeu alguns promotores. 

Além da carta aberta, novas sugestões foram levadas e apontadas pela Secretaria, que também marcou um novo encontro para o dia  27 de março.

Leia a Carta:

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Carta Aberta à nova gestão da Prefeitura Municipal de Santa Maria, de um grupo extra‐oficial e independente de produtores culturais

Resumo:

Somos “agentes da cadeia produtiva da indústria cultural”, “trabalhadores da arte” de Santa Maria. SM tem uma cultura efervescente, ativa, diversa e inventiva, apesar das barreiras e silenciamentos, objetivos e subjetivos, impostos pelo poder público. 


Reivindicamos, prioritariamente, para 2017: a reabertura do Bombril e a consolidação do SMCULT, com implementação imediata do plano e fundo de cultura.

Baixe/leia/assine a CARTA 

Abaixo, eis o texto completo.

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Ao Sr. Prefeito de Santa Maria, à Sra. Secretária de Cultura, Esporte e Lazer de governo;

Somos muitos. Entre figuras públicas e atores anônimos, somos vários, impulsionados de corpo e alma na missão do desenvolvimento humano, social e econômico através da cultura. Nossa riqueza pode passar despercebida aos olhos dos governantes ‐ talvez ofuscada pelas luzes natalinas ou pelos balões no alto do céu ‐ mas alcança outros muitos cantos, olhos, ouvidos e bocas da cidade, e neles se multiplica. Lutamos cotidianamente contra diversos desafios: da renovação produtiva até a construção de canais para o escoamento da produção; contra nosso próprio calendário, divididos entre responsabilidades burocráticas e catarses criativas; entre a consagração conceitual e os boletos vencidos; entre o trabalho produtivo e o trabalho reprodutivo; entre as horas dedicadas à semeadura e os minutos de colheita; entre o trabalho para viver e a vida dedicada a um trabalho. Somos, em um termo técnico moderno, “agentes da cadeia produtiva da indústria cultural”, por assim dizer; mas podem nos chamar simplesmente de “trabalhadores da cultura”. Evidentemente, somos apenas um pequeno recorte da totalidade dos produtores culturais da cidade. Mas, sem a pretensão de representar a todos e todas, acreditamos que os dilemas por nós enfrentados são, em alguma medida, comuns a grande parte dos e das colegas de categoria. 

Vimos, por meio desta, em um movimento propositivo, ativo e não reativo, nos pronunciar sobre a matéria que nos é mais cara. Falamos, é necessário pontuar, de um direito fundamental do ser humano, a ser defendido pelo Estado (CF, Seção II¹); falamos de um importante vetor de desenvolvimento humano, social e econômico. Nossa área de atuação é estratégica para o desenvolvimento sustentável e para a promoção da paz no Município de Santa Maria, que terminou 2016 perdendo as contas dos homicídios e crimes violentos² vividos em suas ruas. Falamos de algo que "vai muito além do âmbito restrito e restritivo das concepções acadêmicas, ou dos ritos e da liturgia de uma suposta classe artística e intelectual"; falamos de "tudo aquilo que, no uso de qualquer coisa, se manifesta para além do mero valor de uso; (...) aquilo que, em cada objeto que produzimos, transcende o meramente técnico; (...) usina de símbolos de um povo; (...) conjunto de signos de cada comunidade e de toda a nação." Falamos "do sentido de nossos atos, a soma de nossos gestos, o senso de nossos jeitos" (Gilberto Gil³). Falamos, portanto, de cultura. 

Baseados na compreensão compartilhada do papel vital que a cultura cumpre na vida de toda e qualquer comunidade ‐ e em especial em uma cidade que se enuncia “Cidade Cultura”, como Santa Maria ‐, defendemos que o setor seja devidamente estimulado e valorizado pelas políticas públicas do município, através de mecanismos democráticos e transparentes, sempre com o objetivo de ampliar o acesso à produção e fruição dos bens culturais gerados em nossa cidade. Portanto, ao abordarmos cultura, afirmamos convictamente que também falamos de qualidade de vida, educação, cidadania, segurança e até mesmo ‐ porque não? ‐ de saúde. 

Este documento tem por objetivo relembrar publicamente os gestores recém‐chegados das responsabilidades do Poder Público Municipal em: planejar e fomentar políticas públicas de cultura; assegurar a preservação e promover a valorização do patrimônio cultural material e imaterial do Município de Santa Maria; e estabelecer condições para o desenvolvimento da economia da cultura, considerando em primeiro plano o interesse público e o respeito à diversidade cultural. 

E não somos somente nós, agentes e interessados diretos desta pauta, que a colocamos em lugar de tamanha importância: esta valoração da cultura está expressa na Lei Orgânica do município (Seção II4, que versa sobre acesso à cultura e garantia de direitos) e também no projeto de lei5 nº 8442/2016, em tramitação na Câmara dos Vereadores, que enfim regulamenta o Sistema Municipal de Cultura – SMCULT, em conformidade com o Sistema Nacional de Cultura6 e o Plano Nacional de Cultura7. 

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Nos parece fundamental que a administração tenha conhecimento da situação atual dos que produzem e sobrevivem de cultura em Santa Maria; segue um breve relato, sob nossa ótica e perspectiva.

No que diz respeito à diversidade de produções, a cidade vive um dos períodos mais férteis e variados: da tradicional Batalha dos Bombeiros, evento da cultura Hip‐Hop que já passou de 50 edições, passando pela literatura e poesia independente, chegando às produções autorais na música e na dramaturgia, são centenas de artistas, bandas, grupos de teatro, editoras e companhias de dança que levam o DNA cultural santa‐mariense além‐fronteiras.

Os espaços de circulação interna de nossa cultura passaram por uma intensa transformação nos últimos anos. Após o caso Kiss, o mercado do entretenimento cultural teve um momento de retração e adequação às novas exigências, motivo que fortaleceu o uso dos espaços públicos como palco e cenário da arte daqui: das tardes de música na Concha Acústica às feiras de rua na Vila Belga, a ocupação da rua se tornou a linguagem possível e autêntica de nossos tempos. Importante ressaltar que boa parte desses eventos acontece à margem do interesse público, que por vezes demonstrou omissão sobre a pauta, que não atinge a expectativa na manutenção e conserto dos equipamentos, não costuma dar suporte de infraestrutura ou segurança e por vezes até dificultou e agiu na coerção de manifestações artísticas (um exemplo é a “Cidade Limpa”, assunto abordado aqui8 e aqui9). 

Em complemento à arte na rua, contamos também com espaços privados ‐ teatros, casas noturnas, centros culturais ‐ que apesar das dificuldades técnicas e econômicas, insistem em abrir portas aos artistas locais, criando vias de financiamento e sustentabilidade ao mercado da cultura local, monetizando o alcance da rua. Os espaços culturais privados têm a característica cíclica de instabilidade ‐ assim como os estabelecimentos abrem as portas e, por algum período, fomentam de maneira ímpar a cultura, eles estão sujeitos às crises econômicas e, quando fecham, criam uma lacuna considerável na cena cultural, deixando órfã deste espaço uma geração inteira de produtores locais. Ou seja, para um pleno e contínuo desenvolvimento da cultura, não é saudável que dependamos apenas da fortuna dos espaços privados.

A Lei de Incentivo à Cultura, resistente projeto de financiamento público à cultura em âmbito municipal, acumula uma considerável porcentagem de projetos frustrados10 e recursos não utilizados, com problemas de execução ou de prestação de contas, seja por dificuldades de captação ou mesmo de entraves burocráticos da estrutura do projeto. Na prática, a LIC se mostra uma ferramenta pouco convidativa aos produtores culturais locais que ainda não estão inseridos em sua lógica particular e por vezes pouco democrática de funcionamento. Aos empresários cujos impostos estão devidamente regularizados, há pouca ou nenhuma vantagem ‐ pelo contrário, há um aumento da demanda burocrática e contábil. Faz‐se necessária uma renovação nos métodos da LIC, bem como a criação de mecanismos de financiamento complementares a ela.

Há ainda um último desafio que é geral entre os produtores: a dificuldade de transpor as fronteiras da cidade com nossa arte. Santa Maria, por sua característica tantas vezes reafirmada de “lugar de passagem”, é uma grande exportadora de talentos individuais, mas são poucas as expressões artísticas santa‐marienses que recorrem o mundo e mantém firmes suas raízes. Acreditamos que a cidade tem produção artística em quantidade e qualidade para estar ao lado de grandes polos culturais do país, no interior e nas metrópoles, e também da América Latina, mas isso passa inevitavelmente pela valorização do poder público local a estas manifestações, em diversos aspectos ‐ das políticas públicas de fomento e financiamento à divulgação e vinculação com outros circuitos culturais.

Em síntese, afirmamos: 

*SM tem uma cultura efervescente, ativa, diversa e inventiva, apesar das barreiras e silenciamentos, objetivos e subjetivos, impostos pelo poder público.*

Mais do que apresentar um resumido panorama da cadeia produtiva da cultura, outro igualmente importante objetivo deste documento é explicitar que a nova gestão já assume em débito com a categoria da cultura: além dos problemas estruturais herdados da gestão Schirmer, já temos como realidade a "fusão" da Secretaria de Cultura a outras pastas da administração ‐ escamoteando a prioridade de um direito fundamental do cidadão e indo de encontro com todos os lentos avanços do SMCULT no legislativo. Igualmente alarmante foi ouvir da boca do prefeito, em uma de suas primeiras aparições públicas, que “nenhum centavo11 do dinheiro público será investido em cultura”, dias antes de votar, na Assembleia Legislativa do RS, a favor da extinção da Fundação Piratini (FM Cultura e TVE), considerada unanimemente pela classe artística uma derrota cultural.

Por fim, cabe apontar uma lista de reivindicações ‐ poucas, objetivas, possíveis ‐ que entendemos por condições fundamentais e urgentes para a (r)existência do renovado mercado cultural de SM: 

● Reestruturação e revitalização dos palcos públicos ‐ Concha Acústica do Parque Itaimbé, Centro de Atividades Múltiplas Garibaldi Poggetti “Bombril”, Praça Saturnino de Brito, Parque do Mallet, Gare, Praça da Cohab F. Ferrari, Praça do Itararé, entre outros equipamentos públicos precarizados;
‐ Prioridade para 2017: reabertura do Bombril, com modelo de gestão coletivo, sendo espaço gratuito e prioritário para veiculação de produções locais. Às pessoas que por ventura ali habitem, dado o abandono do local, deve ser dado tratamento digno e garantia de moradia, direito fundamental do cidadão.
● Consolidação do SMCULT, com implementação imediata do plano e fundo de cultura e a devida regulamentação dos mesmos;
● Constituição de um canal de diálogo efetivo entre a comunidade de trabalhadores da cultura e o poder público, de perfil aberto, plural e periódico, garantindo que cada vez mais agentes da cultura local tenham acesso aos processos consultivos e deliberativos da área. 

Sem mais por ora, desejamos a todos e todas uma boa gestão, atenta à cultura local e devidamente informada de seu atual estado.

Foto: Dartanhan Baldez Figueiredo

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