Há 10 anos Bob Dylan lançava "SHADOWS IN THE NIGHT"
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| A capa fake de "Shadows in the Night", uma paródia sinatradylanesca | |
Bob Dylan lançou “Shadows in the Night” no dia 3 de janeiro de 2015, seu 36º disco de estúdio, um tributo ao repertório explorado por Frank Sinatra. Provavelmente essa ‘homenagem’ possa ter parecido estranha para muitos, mas, de fato, era apenas Bob novamente recarregando as baterias. Eu e Cristiano Radtke investigamos e debatemos exaustivamente sobre esse trabalho. Abaixo, seguem algumas conclusões do que concluímos naquele início de 2015, há exatos 10 anos.
Grings – Em primeiro lugar, quem não gosta de Frank Sinatra, não divide o mesmo copo de uísque comigo. O que talvez muita gente não perceba, é que Dylan já transita nessa praia de flertar com jazz e o songbook norte-americano faz tempo. Por exemplo, dá pra perceber essa linhagem musical em algumas canções de “Love & Theft” e “Modern Times”, e também pela atitude de crooner que ele adotou um tempo antes de gravar esse álbum, como podemos observr em muitos vídeos de seus shows. Dylan começou a utilizar uma nova abordagem nas gravações e apresentações, tanto pela posicionamento no palco, tocando menos seus instrumentos usuais (harmônica, violão e guitarra), e se aventurando mais ao piano. De todo o modo o segredo de tudo está na forma como utiliza sua voz.
Radtke – É, esse lance crooner que ele assumiu de vez se encaixa em mais um dos “renascimentos” do homem, que começou como cantor folk, depois enfrentou a raiva dos puristas com sua guitarra, passou pela fase country, iniciando com “Basement Tapes” (1975), voltou a ser um cantor de rock no tour de 1974, entrou na chamada ‘fase cristã’, sobreviveu aos anos 1980 e ainda vem renascendo e mudando de persona a cada disco que lança. Quem poderia prever esse álbum com músicas gravadas pelo Sinatra?
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A capa original de Shadows in the Night. Divulgação Columbia |
Grings – Bem, quem acompanhou o Time Radio Hour, programa de rádio que Dylan fez no início dos anos 2000, sabe da sua paixão por standards. No caso de “Shadows in the Night”, as canções escolhidas cobrem cinco décadas importantíssimas da música do seu país, partindo dos anos 1920, até o final dos anos 1960. Em recente entrevista ele disse que se inspirou em “Stardust”, LP lançado por Willie Nelson em 1978. Outro crítico concluiu que suas interpretações lembram os dias finais de Chet Baker em “Let’s Get Lost” (1989). Acho que é um pouco de tudo isso somado ao faro do bardo em remexer nas origens da música do seu país. Ah, e os críticos adoram falar mal da voz de Bob. David Bowie disse uma vez que sua voz era uma mistura de areia com cola (claro que foi um elogio). E aí que reside o ponto principal desse pulo do gato, para seu triunfo, Dylan canta esse repertório de clássicos do seu jeito, sempre de uma maneira muito singular.
Confira “Shadows in the Night” na íntegra AQUI
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Dylan e sua banda em 2015. Divulgação |
O disco já começa como uma faca afiada perfurando algo macio. “I’m a Fool to Want You”, música que Sinatra ajudou a escrever, mostra o quanto Dylan reinventa essas canções com rara propriedade. Gravada originalmente com mais de trinta músicos, aqui ele dá o tom das coisas já nos primeiros segundos. Guitarras e violões limpinhos, pedal steel na linha de frente e bateria invisível. Al Schmitt, engenheiro de som que captou o disco no início de 2014, disse em entrevista que Bob afirmou nunca ter ouvido sua voz soar tão bem. Além disso, a letra desse tema — eternizado na voz de Billie Holiday — dá as cartas da temática de “Shadows in the Night”: um amor perdido no tempo, e que talvez nunca mais seja resgatado.
“The Night We Called It A Day”
O naipe de sopros e o baixo acústico de Tony Garnier saltam aos ouvidos. Já o violão jazzístico de Stu Kimbal nos coloca para bater o pé mansamente. Charlie Sexton faz o primeiro (e curtíssimo) solo de guitarra. Dylan apresenta uma versão minimalista que, por exemplo, rivaliza com a releitura feita por Chet Baker. Lembrando que a ausência de piano, instrumento inexistente nesse trabalho, é outra característica saliente nos arranjos. Algo interessante para um disco que tem um selo com cores jazzísticas.
“Stay With Me”
Essa foi a segunda faixa liberada para audição. Um amigo me disse que o pedal steel foi um instrumento inventado pelos anjos. Segundo ele, eles, os anjos, não tocariam harpas, mas sim esse instrumento vinculado à música country. Donnie Herron, sideman na Never Ending Tour por quase 20 anos, é um dos destaques de “Shadows in the Night”. Fácil entender por quê, os arranjos o privilegiam, já que as orquestrações foram substituídas pelo pedal steel. Com isso, o link do country com o jazz ficou aguçado e longe do óbvio. Quanto a letra, é Dylan implorando desesperadamente para que seu amor não vá embora.
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Reprodução do selo do CD. |
Além de Sinatra, nomes como Bing Crosby, Sarah Vaughan, Eartha Kitt, Bill Evans e Miles Davis fizeram sua versão de “Autumn Leaves”. Essa canção escrita por um poeta francês e musicada por maestro húngaro, ironicamente tornou-se um patrimônio do imaginário musical norte-americano. Na versão de “Shadows in the Night” o baixo e o arco que fustiga as cordas ondulam simultaneamente seguindo a voz de Bob, o que consegue encontrar uma nova visão sobre uma música que foi tão exaustivamente explorada.
"Why Try to Change Me Now”
Mais recentemente, Fionna Apple fez uma bonita releitura de “Why Try to Change Me Now”. O lado A termina com o mesmo número, outro som guiado pela voz do cantor e o pedal steel. O violão apenas pontua os acordes na gaveta do tom. Devagar, bem devagar.
“Some Enchanted Evening”
Leia nos livros, olhe nos créditos dos seus discos de jazz e perceba a importância da dupla Oscar Hammerstein II e Richard Rodgers. A América de terno e gravata dos filmes e do século passado foi embalada por dezenas de composições com a assinatura Hammerstein-Rodgers. O que muitos não imaginariam é que Dylan um dia cantaria uma delas. E que som! “Some Enchanted Evening” parece ter sido escrita por Bob.
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Al Schmidtt, o engenheiro de som do álbum. |
O première de “Shadows in the Night” ganhou divulgação em maio de 2014. E “Fool Moon and Empty Arms” foi uma ótima escolha para esse debute. é uma das melhores do novo trabalho, outro bom exemplo de uma interpretação peculiar. E eis que me surge a pergunta: George Receli realmente participou das gravações? Sim, ele apenas fez uns barulhinhos aqui e ali, trabalhando como percussionista. A limpeza do disco passa pela ausência de uma bateria.
“Where Are You?”
Se você ouvir a versão original de “Where Are You?” vai constatar o quão desafiadora e corajosa é a iniciativa de Dylan em homenagear Sinatra. E de todo modo, eis uma prova viva de que ele novamente se reinventou como crooner.
“What’ll I Do”
Um tema de outro gigante dos standards, Irving Berling, ganhou destaque de grande parte dos críticos por um detalhe interessante: dá pra ouvir a respiração de Dylan. Talvez por que tudo foi gravado ao vivo (sem fones de ouvido), “What’ll I Do” é o exemplo claro dessa sensação de ouvir a música respirando como um organismo vivo, do cantor buscando fôlego entre um frase e outra até os espaços vazios que essa circulação proporciona. Por isso tudo pulsa livre, sem tingimentos, recortes ou maquiagem.
“That Lucky Old Sun”
O disco encerra com outro clássico absoluto do vocabulário jazzístico. Logo no início, os sopros dão a letra que o filme está acabando. Sim, dá pra imaginar os créditos e a ficha técnica deslizando pela tela. O clima solene e a forma como Bob pronuncia as palavras promovem o epílogo cênico certamente abre brechas nas mentes que visualizam uma música isenta de modismos.
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Eis o crooner. |
Se há algo negativo nesse conjunto de canções? Talvez o álbum soe repetitivo a ouvidos menos acostumados a sutilezas e o clima jazzy dos standards. “Shadows in the Night” é um trabalho linear, sem momentos de alta rotação e flui em constante baixa rotação. O disco de Bob Dylan, como o nome já entrega, foi planejado para audições em noites e madrugada insones. Trilha sonora para garçonetes recolherem os copos antes de o último cliente pagar a conta, ou de um leão de chácara expulsar algum bêbado encrenqueiro que está morrendo de saudades de alguém.
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Dylan e sua banda no palco. |
Bob Dylan – vocal e produção
Tony Garnier – baixo
George Receli – percussão
Donnie Herron – pedal steel
Charlie Sexton e Stu Kimbal – violão e guitarra
Dylan Hart e Joseph Meyer – trompa
Daniel Fornero e Larry G. Hall – trompete
Andrew Martin, Alan Kaplan e Francisco Torres – trombone
Ficha técnica
Geoff Gans – arte gráfica
Steve Genewick – engenheiro assistente de áudio
D. I. Harper – arranjos
Al Schmitt – gravação e mixagem
Doug Sax – masterização
Tracklist
1. “I’m a Fool to Want You” Frank (Sinatra, Jack Wolf, Joel Herron) 4:51
2. “The Night We Called It a Day” (Matt Dennis, Tom Adair) 3:24
3. “Stay with Me” (Jerome Moross, Carolyn Leigh) 2:56
4. “Autumn Leaves” (Joseph Kosma, Jacques Prévert ) 3:02
5. “Why Try to Change Me Now” (Cy Coleman, Joseph McCarthy) 3:38
6. “Some Enchanted Evening” (Oscar Hammerstein II, Richard Rodgers) 3:28
7. “Full Moon and Empty Arms” (Buddy Kaye, Ted Mossman, Sergei Rachmaninoff) 3:26
8. “Where Are You?” (Harold Adamson, Jimmy McHugh) 3:37
9. “What’ll I Do” (Irving Berlin) 3:21
10. “That Lucky Old Sun” (Haven Gillespie, Beasley Smith) 3:39
Tempo total
35:22
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Contracapa do álbum. |
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