Os 30 anos de "HARVEST MOON", de Neil Young

Reprodução

O ano era 1992. Neil Young completaria em novembro 47 anos. Naqueles dias, eu já tinha uma boa coleção de títulos dele, e há um bom tempo acompanhava todos os lançamentos com seu nome na capa. "Freedom" (1989) e "Ragged Glory" (1990) bateram forte na pinha dos fãs e ampliaram seu público. Todos sabiam: depois de uma década capenga, oscilando como um motor mal regulado, finalmente — e outra vez — Neil estava na ponta dos cascos, colocando no mundo álbuns ao nível de seus melhores momentos na década de 1970. Quando “Harvest Moon” caiu nas prateleiras, a Pedra de Roseta da então 'nova tecnologia digital' — o  CD — fundamentou sua primeira marca no meu acervo. Por quê? Simplesmente porque “Harvest Moon” foi lançado na época somente em Compact Disc. Desde então tornou-se meu número 1, primeiro CD comprado e o meu preferido em sua discografia. Só o teria em vinil 25 anos depois, em 2017, quando foi lançado nos Estados Unidos num Record Store Day. 

Veja a live de "Harvest Moon" no Pitadas do Sal.


Passado 30 anos, "Harvest Moon" continua tão relevante como naquele início da década do grunge. Em fevereiro deste ano, lembramos os 50 anos de "Harvest", álbum predecessor e gema que originou a carga espiritual de seu sucessor.  Assim, em 1991/92, Neil reagrupou a mesma banda de apoio formada em 1971/72, os Stray Gators. Desse modo, pegou o violão e gravou uma sequência para o álbum que o jogou no topo das paradas. "Harvest Moon" busca como fonte um mesmo núcleo de baladas de inspiração country, foi gravado ao vivo em estúdio (com overdubs) e novamente chamou seu velho amigo Jack Nitzche para produzir os arranjos orquestrais. Convocou inclusive os mesmos cantores de 72 (James Taylor e Linda Ronstadt), que na época deram retoques finais em seu único maior hit de todos os tempos, "Heart of Gold". Nos dois álbuns também estão Ben Keith (falecido em 2011); Tim Drummond (falecido em 2015)/ baixo; Kenny Buttrey (falecido em 2004)/ bateria e Spooner Oldhan/ teclados. Nas vozes de apoio, além de James Taylor e Linda Ronstadt, Neil escalou Nicolette Larson (falecida em 1997); sua irmã, Astrid Young; e até seu roadie Larry Cragg, colabora no coro de uma canção.

Veja a live de "Harvest" no Pitadas do Sal.  


Uma das críticas de alguns fãs e jornalistas está justamente nas camadas vocais de "Harvest Moon", pois, segundos eles — haveria um exagero nessa escolha, um arranjo poluente na atmosfera do álbum. Afinal, ele sempre se resolveu com um violão e uma gaita de boca, não é? Se Neil Young e Ben Keith (produtores do álbum) tivessem realizado as sessões de uma forma mais orgânica, com menos instrumentações, possivelmente teriam agradado a esses críticos. Assim como o pedal steel de Ben Keith, onipresente nas canções, e âncora country no resultado final, também foi motivo de críticas. Ainda se falou em um flerte mais acintoso de Neil com o pop, algo que ele teoricamente teria dosado com mais equilíbrio nos discos mais recentes dessa leva — "Freedom" e "Ragged Glory". Acho tudo isso uma bobagem, pois "Harvest Moon" é um álbum ecumênico e reverencial das crenças desse artista que tanto nos deu, certamente está entre seus melhores momentos e será lembrado e celebrado como um dos retratos da sua essência musical — violão, gaita de boca, piano, letras reflexivas e inquietantes, e um time de amigos para ajudá-lo a desenvolver esse trabalho.   

Em 2009, Neil lançou um álbum ao vivo que registra vários shows realizados em 1992, os shows de divulgação de "Harvest Moon". Ele o batizou de "Dreaming Man". Muitos consideram este álbum melhor que o próprio disco de estúdio que o inspirou. Vejo-os como obras diferentes, mas complementares.              

Neil e os Stray  Gators em 1992. Foto: reprodução
Se tivesse sido lançado em 1973, "Harvest Moon" teria sido acusado de fazer mais do mesmo, de cair num autopastiche. Em 1992, entretanto, o álbum foi saudado como o fim de uma grande jornada musical. Nas duas décadas que separam "Harvest" de seu sucessor, Neil havia passado de herói hippie a caipira reacionário, percorrendo um tortuoso caminho de volta. No entanto, "Harvest Moon" demarca a confirmação definitiva de um dos ressurgimentos mais notáveis da história do rock. Nem tanto um retorno à forma, mas uma viagem de volta no tempo, o álbum mostrava que Neil Young finalmente aceitara o que todo mundo já sabia: que o "Harvest" original era um clássico, e deveria ser celebrado como tal, algo que ele próprio renegou por anos.               

Voltando a 1992, assim comprei o primeiro Compact Disc, meu primeiro CD Player — um AK-630 Philips, por ser meu primeiro CD —, mas principalmente pelo conteúdo — “Harvest Moon” foi e ainda é um dos álbuns mais ouvidos da minha vida.

Na época, Neil falou sobre "Harvest Moon" na revista norte-americana Rolling Stone: “Meu disco aborda a habilidade para sobreviver, a permanência, a continuidade, o crescimento e a possibilidade de chegar ainda mais alto. Não se trata apenas de me manter no mesmo lugar, de só se sentir bem. A questão primordial me parece ser não apenas ativo aos 47 anos, mas sim mais vivo e mais ativo do que, digamos, aos 23”.

Uma curiosidade: Harvest Moon (Lua da Colheita), foi batizada pelos índios, por ser a lua cheia do mês de setembro, início do outono e de algumas colheitas no hemisfério norte. Os agricultores norte-americanos também a chamam assim, pois essa lua permitia o trabalho durante a noite, numa época em que não existiam modernas máquinas. Saiba mais AQUI

Inspirada nessa temática inicial, "Harvest Moon” também versa na questão ambiental e fala dos conflitos armados. Traz o amor, romance, evoca desejos e sonhos, faz reverencia aos ídolos e reflete sobre a passagem do tempo. 

UNKNOWN LEGEND

A música de abertura conta a história de uma “Lenda Desconhecida” – uma mulher batalhadora, com dois filhos, e que esvoaça seus cabelos loiros pilotando uma moto Harley Davison, numa visão quase estereotipada da Costa Oeste norte-americana. Essa mulher tem nome — ela é Peggi Young, esposa de Neil por mais de 25 anos, com quem teve dois filhos. O amor do casal foi homenageado em diversas canções. Contudo. "Unknown Legend" — escrita na época de "Comes A Time", em 1978, um dos mais conhecidos álbuns de Neil no Brasil. A referência é explícita: Peggi era garçonete num restaurante perto de sua fazenda, igual a personagem da música. Alguns biógrafos ainda veem em "Unknown Legend" traços da primeira mulher de Neil, Susan Acevedo, que era dona de um restaurante no final dos anos 1960. Neil disse que a letra é um mix de várias mulheres que conheceu. 

"Nunca vi mulher mais requintada/ Costumava fazer um pedido apenas para vê-la deslizar elo chão". Peggi morreu em 2019, aos 66 anos, e também gravou álbuns como cantora. "Unknown Legend" é um símbolo da força das canções de Neil — há simplicidade e sinceridade poética — é folk, country e pop. A voz de Linda Ronstadt encorpa o poder de fogo de um dos símbolos de "Harvest Moon", as camadas vocais; É só o início, e que início.     

FROM HANK TO HENDRIX

Algo como “De Hank Marvin, guitarrista do grupo britânico The Shadows, um dos ídolos de Neil — e também podemos lembrar de Hank Williams, o mais celebrado dos Hank —, a Jimi Hendrix”. Tributo a quem faz da música um meio de sobrevivência, assim como o próprio compositor, e da consequência das vicissitudes frente ao inexorável efeito do tempo – 

“From Hank to Hendrix / I walked these streets with you / Here I am with this old guitar /Doin’ what I do (De Hank a Hendrix / Caminhei por essas ruas contigo/ Cá estou com esse velho violão / fazendo o que sei fazer). 

Neil ainda fala de musas e de amores que se vão – 

“From Marilyn to Madonna / I always loved your smile / Now we’re headed for the big divorce / California-style (De Marilyn a Madonna / Eu sempre amei o seu sorriso/ E agora cá estamos, a beira de um grande divórcio ao estilo californiano). 

Ele reflete sobre a renovação e o desgaste dos anos – “New glass in the window / New leaf on the tree/ New distance between us (Vidros novos na janela/ Folhas jovens na árvore/ A distância entre nós). 

E estoico, depois conclui – “The same thing that makes you live/ Can kill you in the end (A mesma coisa que te mantém vivo/ Pode te matar no fim). 

Uma letra pintada com cores iluminadas e cinzentas, um country rock de tirar o chapéu aditivado pelos backings de James Taylor e Linda Ronstadt. Canção para emoldurar e colocar na parede.  

YOU AND ME

"You and Me" é uma antiga canção folk composta em 1971, pelo menos parte dela foi escrita nesse ano. É o Neil folk em sua essência, apenas ele e o violão, mais a presença importante de Nicolette Larson na voz de apoio. Outra letra que reflete sobre a passagem do tempo:

"Open up your eyes/ See how life time flies" (Abra seus olhos/ Veja como uma vida voa). A imagem de um velho observando esse casal nos leva à lembrança de uma canção de Harvest, "Old Man". No contexto de álbum, ela é a preparação perfeita para o que vem a seguir... 

HARVEST MOON

Faixa título do disco, empresta a lenda — mitologia, tradição — da Lua da Colheita para falar da renovação do amor. Quem já assistiu o "Unplugged MTV" deve lembrar Larry Cragg, roadie de Young, nos mostrando o quanto uma vassoura de palha pode ser útil na ambiência de uma canção. A música tem sua melodia levemente baseada em “Walk Right Back” (ouça AQUI), sucesso dos Everly Brothers nos anos 1960. É mais uma homenagem a Peggi Morton, e o clipe de "Harvest Moon" recria o bar onde ela trabalhava como garçonete nos anos 1970, local onde o casal se conheceu. .       


WAR OF MAN

Composta na época da Guerra do Golfo, "War of Man" bate na questão ambientalista do conflito. Aqui as camadas vocais encontram o maguns opus de "Harvest Moon - cá estão — Linda Ronstadt, Nicolette Larson e Astrid Young — além das vozes de James Taylor e Larry Cragg. Neil fala que não há vencedores nessa guerra estúpida, e se compadece com os animais e todo o sofrimento, fala das crianças atingidas pelo conflito, e de toda a consequência que uma guerra desse porte. Infelizmente, "War of Man" ainda pode ser contextualizada nos dias de hoje, tudo o que há nela, suas mensagens e alertas , ainda estão validadas.       

ONE OF THESE DAYS

Uma canção sobre a amizade como "Canção da América" de Milton e Fernando Brant ou "You've Got a Friend" de Carole King, não tão incensada como as aqui citadas, mas certamente uma das joias perdidas de "Harvest Moon".     

– “One of these days / I’m gonna to sit and write a long letter (Um dia desses / eu vou me sentar e escrever uma longa carta para todos os meus amigos)”.  Essa sensação de que devíamos ter feito e não fizemos, da postergação, de algo não feito, mas que poderia ser realizado, é um dos recados desse tema. Era os anos 1990, época em que os amigos ainda trocavam cartas. Essa "long letter" de "One of These Days" agora poderia ser substituída por uma mensagem no WhatsApp ou um longo e-mail. Temos a alegria de novamente contar com os vocais de apoio de Linda Ronstadt e James Taylor.    

SUCH A WOMAN

Essa canção melancólica conta com arranjos do velho colaborador Jack Nitzsche (ele também está presente em “Harvest”). Além de Neil (voz e piano), Spooner Oldham (teclados), Tim Drumond (baixo) e Kenny Butrey (bateria), Nicolette Larson e Astrid Young nas vozes de apoio, a regência orquestral é de Suzie Katayama, responsável pela parte erudita de "November Rain", do Guns N' Roses, conduzindo em "Such A Woman" uma orquestra com 19 musicistas (violas, cellos e violinos). 

"No one else can kill me like you do/ No one else can fill me like you do/ And no one else can feel our pain" (Ninguém mais pode me matar como você faz/ Ninguém mais pode me preencher como você faz/ E ninguém mais pode sentir nossa dor). O que para muitos, numa primeira impressão, pode parecer piegas, revela o quão estonteante e arrebatador pode ser uma aparentemente simples canção de amor. Quando olhamos para a última a última frase citada acima — "Ninguém mais pode sentir nossa dor", possivelmente ele esteja se referindo ao fato de ter dois filhos com paralisia cerebral (um deles, Zeke, com Peggi) e, o mais velho, Ben, com a atriz Carrie Snodgrass. Essa dualidade, "A mesma coisa que te sustenta pode te matar no fim" — "Você me mata (...) Você me preenche" — "Folhas jovens na árvore/ Nova distância entre nós), não apenas é um símbolo das letras do disco, mas também da própria carreira de Neil Young.     

OLD KING 

Country movido pelo banjo de Ben Keith. Homenagem a Elvis Presley, mais propriamente e a um de seus maiores sucessos, “Hound Dog”. Relembro aqui "My My, Hey Hey (Out Of The Blue)", composta logo após a morte de Elvis em 1977, em que Young diz "The king is gone/ But he's not forgotten (O Rei está morto/ Mas não será esquecido)Na letra de "Old King", um misto de fábula e história infantil — repleta de ironia e pegadinhas — Neil fala de uma caçada de cervos e lembra do melhor de seus cães, chamado King —  "Never knew a dog that was half as fine" (Jamais conheci um cão que fosse metade do que ele foi). De todo o modo, "Old King" é o galho mais fraco de "Harvest Moon", mas funciona no contexto de álbum.       

DREAMING MAN

Faixa 1 do álbum ao vivo de 2009, registro de vários shows realizados em 1992 (com Neil sozinho no palco tocando violão, harmônica e piano), "Dreaming Man" é um dos momentos mais iluminados de "Harvest Moon".    

–”I’m a dreamin’ man, yes, that’s my problem (Eu sou um sonhador / Sim, esse é o meu problema“. Anos antes, em "Like A Hurricane" ele disse algo parecido: "I am just a dreamer" (Eu sou apenas um sonhador). Nicolette e Astrid fazem os delicados vocais de apoio, a banda toca com uma suavidade semelhante e Neil brinca o tempo todo se declarando um ser avoado e assombrado pelos seus pensamentos sonhadores, mas vai além e nos traz requintes poéticos e alegorias:

"Now the night is gone/ A new day is dawning/ And our homeless dreams/ Go back to the street/ Another time or place, another civilization/ Would really make this life feel so complete" (Agora a noite se foi/ Um novo dia surge/ E nossos sonhos desabrigados voltam às ruas/ Outro tempo e lugar/ Outra civilização/ Realmente poderiam fazer esta vida sentir-se tão completa".      

NATURAL BEATY 

Gravada ao vivo no Civic Auditorium, em Portland, Oregon, o longo tema que finaliza o álbum é outro manifesto ambientalista do velho. É a mais brasileira das músicas de Neil, já que ele insere áudios captados na floresta amazônica no final dos anos 1980, registro de "A Month in the Brazilian Rainforest" (1990), um CD ambientalista com sons da natureza. 

"A natural beauty should be/ Preserved like a monument, to nature/ Don't judge yourself too harsh my love/ Or someday you might find your soul, endangered/ A natural beauty should be/ Preserved like a monument, to nature/ Amazon/ You had so much, and now so much is gone/ What are you going to do With your life?" (Uma beleza natural deve ser preservada como um monumento, à natureza/ Não se torture, meu amor/ Ou algum dia você encontrará sua alma, (também) em extinção/ Amazônia/ Você tinha tanto, e agora tudo se foi/ O que você vai fazer com sua vida?". 

Neil sempre voltou seus olhos para a América do Sul, é um ativista da causa indigenista, o que pode ser comprovado em canções como "Pocahontas", Ride My Llama", "Cortez the Killer", "Like An Inca" entre outras. Por isso, me parece legítimo "Harvest Moon", um disco que se baseia inicialmente numa tradição ligada ao movimento lunar e as colheitas encontrar seu desfecho em "Natural Beaty".     

Passados 30 anos, “Harvest Moon” ainda figura num local de luxo na estante aqui de casa. Além de música de primeira linha, trata-se de um trabalho que continua passando seus recados. Cada um colhe aquilo que semeia, não é Neil? Estou à espera da próxima colheita.

Comentários

  1. Mais uma análise supimpa,um texto sensacional! Obrigado, irmão, por comolementar e enriquecer nossa live! 🤘🏻🤩

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  2. Maravilhoso texto, parabéns!!
    Um álbum impar.

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