A MÃO DO MORTO

Longe daquela meia luz tremeluzente sobre a mesa dar os ares de um palco ou coisa parecida. A cantoria não soou bem. Parecia deboche. Na mesa, além dele, ainda havia três jogadores. O chorão, o espertinho trapaceiro e o silencioso. 

E foi justamente esse último sujeito, posicionado ao seu lado, exatamente o mais próximo a sua esquerda, que demonstrou reprovar a cançãozinha improvisada.

“And I love you, I love you, I love you / Like never beforeeee”

Ele não se importa. Continua cantando:


“And the songbirds keep singing / Like the know the score / And I love you, I love you, I love you / Like never before, like never buuuufóooore”.

A forma como canta ‘before’ é uma tentativa de imitar o sotaque de Willie Nelson em “Songbird”. Ele chega perto.

 

buuuufóooore”.

O cigarro do sujeito pende no lado esquerdo da boca prestes a despencar. E cai toda vez em que ele fala de uma forma descontrolada (em um tom sussurrado):
“Cara! Não vai pegar as tuas cartas?“.

Ele pensou “Hummm, esse idiota fala!“. Olha fixamente para a figura. No rosto, um sorriso cínico e controlado.

“Claro”. “Só se for agora”, responde de bate pronto.

Então, posiciona a sua fração correspondente do baralho entre ambas as mãos e aos poucos vai desvelando a mágica. Os dedos próximos ao rosto e as cartas bem à frente dos olhos. Eis que surgem dois ases negros, dois oito negros e um valete de paus. Esbugalha os olhos. Era a “Mão do Morto”, famosa combinação de cartas que o pistoleiro de aluguel Wild Bill Hickok tinha em suas mãos quando foi assassinado com um tiro pelas costas por um tal de Jack McCall num Saloon de Deadwood, Dakota.

Premonição?

Ele conhecia essa história desde os onze ou doze anos. Guardara a vida toda entre suas coisas uma HQ do Ken Parker que narrava esse episódio. “A Balada do Pistoleiro”, esse é o título do gibi.
Inicialmente enxerga essa coincidência como um bilhete premiado. Tipo uma boa história pronta pra ser escrita. Pensa em diversas situações que aparentemente não tem nada a ver com essa. Um desenho incrível de uma mulher nua aprisionado no escuro de uma gaveta. A declaração de amor que ainda não foi dita.

A mente dele voa como um supersônico.

Do lado de fora, pela janela entreaberta as suas costas sente o cheiro de grama cortada. Lembra-se do livro que encontrou na lata de lixo, e das respostas nunca respondidas durante a leitura. Não que buscasse alguma porra de livro de autoajuda. Bem pelo contrário.

Por isso, resolve não brincar com aquela combinação histórica. Troca o Valete de Paus. A nova carta que chega é parecida com a que foi descartada. Outro Valete. Só que de Copas. Sorri. A “mão” do jogo é dele. Sente isso. Aposta metade das fichas. O lance de esboçar um sorriso a lá Paul Newman em “Golpe de Mestre” parece ter impressionado metade da mesa. Dois jogadores caem fora. Resta o silencioso homem da esquerda. Então, uma a uma, coloca as últimas cinco fichas no tablado.

Fica encarando o Valete. Por uma fração de segundos imagina a carta como um organismo vivo.

Apenas um ganha o jogo”, ouve essa frase com muita clareza. Vinda do nada.

Talvez fosse o Valete de Copas falando com ele. Escuta o último aviso:

“Muitos já tentaram. Poucos se deram bem”.

A carta continua se comunicando. Olhando o oponente com desprezo, resolve pagar pra ver. Lembra que se esqueceu de fazer uma oração aos Deuses da Luxúria.

BANG!

Um estrondo de arma de fogo eclode bem atrás da sua cabeça.

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