A BALADA DOS SAPATOS AZUIS


Todas as noites, quando coloca a cabeça no travesseiro, mesmo sabendo que ela está a milhares de quilômetros de distância, de toda a maneira, acredita: sim, ainda consegue ouvir perfeitamente o som daqueles sapatos de salto alto percutindo no assoalho da sua casa. Sabe que não está louco, tem certeza, não são fantasmas!

Ele ouve claramente...

toc-toc.. toc-toc... toc-toc”.

É quando surge a imagem dela cruzando a sala num calçado azul brilhante. Panturrilhas salientes, firmes, pernas brancas envolvidas numa meia-calça cor da pele. #VestidoAzulEscamaDeSereia, cabelo preso, rosto levemente maquiado. Cílios pintados, olhos castanhos límpidos. Sorriso aberto como um sol nascente. 

Outras vezes ele se vê do antigo apê dela. Deitado no sofá, esperando o jantar com a mesa já posta. Naquela sala, o barulho dos sapatos azuis retumba como uma canção bonita vinda das sapatilhas de uma Ginger Rodgers. E nesse musical Off-Broadway exclusivo, como único expectador, lembra-se de assistir a diversos premières. Um privilégio só dele.   

Por onde andarão aqueles sapatos? Por que ruas desenha-se aquela presença feminina? Por que salões de baile e com quem eles dialogam danças e cruzamentos de pernas? Será que alguém pisou nos teus dedos do pé? Será que a silhueta e os contornos do teu corpo estão sendo devidamente visualizados por “esses estranhos sujeitos” que povoam teus dias e noites?
Ele tem certeza, ninguém... NINGUÉM além dele tem a capacidade de admirá-la tão bem. Ele é dotado de uma espécie de tino que identifica o belo antes que o resto da humanidade o perceba. A complexidade, as nuanças que respiram dentro dessa curva sinuosa que leva a alma de alguém. Os anseios, desejos mais íntimos e aspirações. 
Ah, ele ainda ouve o som daqueles sapatos de salto vazando dos elevadores, descendo e subindo escadas. Os dedos confortavelmente espremidos dentro daquele espaço que a sustenta. Há equilíbrio, força e garbo em cada gesto que desencadeia todos os movimentos. Elegância não se compra na esquina. Há poesia nas viradas de pescoço, a forma como olha e abre a boca e o som da voz dela se desdobrando até os ouvidos alheios. 

Todas as noites, quando coloca a cabeça no travesseiro, imagina aquela imagem chispando no asfalto e nos paralelepípedos das capitais e cidadezinhas do mundo. Entrando e saindo de táxis e automóveis.  Vasculhando bares, restaurantes e boutiques. Embarcando em aeroportos e outras viagens.

Isso por que, quando para e pensa em tudo que viveu, aquele som dos sapatos azuis brilhantes parece ser uma joia rara que ainda reluz intensamente em suas lembranças.

Ela, música favorita, a prata e o ouro. O sino de Belém que ressoa além do tempo.   


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