A Longa Estrada Aberta



Quem nunca teve, ao menos uma única vez, vontade de mandar tudo pra bem longe e literalmente colocar o pé na estrada. Não ter com o que se preocupar, não ter contas a pagar, não ter uma esposa aporrinhando o saco porque você deixou o sapato jogado no meio da sala. Como seria bom esquecer o horário, compromissos, não ter um chefe a lhe ditar ordens e mais ordens etc... Bom, pelo menos em pensamento, todo mundo já deve ter imaginado isso um dia. Essa teoria da contravenção foi difundida em muitos filmes, livros, músicas e nas histórias que você já ouviu ao longo de sua vida. Um tio que fugiu de casa e nunca mais foi visto, um conhecido que abandonou a faculdade de medicina e abraçou a música, uma amiga que resolveu chutar a monotonia de um emprego público e se dedicar à astrologia. A transgressão do ritmo normal do cotidiano e a quebra das regras ou do maneio convencional das coisas sempre incomodaram o traquejo de uma sociedade viciada em não sair do trilho. Por que alterar o que não precisa ser mudado?

No livro Viajante Solitário (Lonesome Traveler), Jack Kerouac já previa a extinção do autêntico vagabundo americano. Sua retórica passava por defender andarilhos ilustres, e Jack relembra no seu texto algumas figuras históricas como Jesus Cristo e Benjamin Franklin, que segundo ele, curtiam como poucos a arte de perambular. Ainda na linha de raciocínio do rei dos Beats, o vagabundo whitmanesco estaria com os dias contados devido à truculência do capitalismo americano, principalmente pelo crescente culto à sociedade de consumo. Isso já começava a ser percebido pelo visionário escritor de On The Road, lá no final dos anos 40. "Tenho um bom chapéu na cabeça / uma trouxa as costas / o meu bordão /a brisa refrescante e a lua cheia". Pois bem, essa livre associação do poema de Dwight Goddard, entre idealismo, audácia, individualismo e culto a estrada, nos cai como uma luva na caracterização dos personagens de Easy Rider.

Numa das cenas iniciais de Sem Destino (como o filme foi batizado no Brasil), um dos nossos heróis joga fora o relógio de pulso antes de acelerar sua moto Harley Davidson em direção à estrada aberta. Esse espírito de liberdade que conduz a dupla de protagonistas no longa ganha asas na figura de Whytt (Peter Fonda) e Billy (Dennis Hooper) e de imediato nos faz voltar ao oeste selvagem do século XIX. Os nomes arremetem propositalmente ao lendário xerife Whytt Earp e ao pistoleiro Billy The Kid. A lei e o bom bandido lado a lado? A lei e o espírito de Robin Hood solfejando na mesma pauta? Pode ser! Billy & Whytt vivem num mundo onde a ausência de regras é bem-vinda. Um universo paralelo que foi fixado para sempre na geração Woodstock e que sedimentou o final da década de 60, com sua ideologia de paz & amor. Tá certo que eles não são flor que se cheire, já que toda a aventura foi financiada pela venda de uma carga valiosa de cocaína pra um almofadinha (vivido no filme pelo músico e produtor Phil Spector). É, logo de cara somos informados: - eles não são politicamente corretos. Longe disso! Em outro viés, o filme toca fundo na questão do preconceito, e sempre soubemos - o diferente nunca deixou de assustar o americano médio. Pra começar, cabelos compridos é coisa de maricas. Mas eles não se importam muito com essa ladainha. O grande barato é chegar sãos e salvos até o destino tão sonhado: o Mardi Gras em Nova Orleans. Sem destino foi escrito por Fonda e dirigido por Hooper, sendo que os dois colocaram dinheiro do próprio bolso naquele que é, sem sombra de dúvida, o projeto de suas vidas. Entre vários camaradas, esse jogo de amigos também tinha a primorosa ajuda de Laslo Kovacs como diretor de fotografia e a participação do grande Jack Nicholson (na época apenas um mero coadjuvante) roubando a cena como um filhinho de papai que resolve se unir ao bando de Billy & Whytt. A cena em que ele sai da cadeia e dá uma beiçada numa garrafinha de Jim Bean é antológica. Engraçadíssima!

O filme inaugurou a era do vídeo-clipe antes mesmo dela existir. Vamos a alguns desses takes que colam na memória e anteciparam o formato MTV de promover uma canção. A nervosa The Pusher do Steppenwolf faz o abre-alas roqueiro e também já dá o toque de como será o ritmo do filme. A cena seguinte com as motocicletas atropelando os créditos iniciais ao som do hard rock Born To Be Wild nos faz pisar com gana no acelerador, como se fossemos os próprios protagonistas do filme. O clima bicho-grilo dá mesmo o ar da graça ao som dos The Byrds, em Wasn’t Born To Follow, quando Whytt resolve dar uma forçinha a um caroneiro hippie. Logo depois passeamos pelo Monument Valley e exploramos a lendária paisagem onde grande parte dos filmes de faroeste foram filmados. A apoteose acontece ao som da balada The Weight. A canção do The Band, é considerada uma das mais significativas canções do final daquela década. Ainda tem a guitarra de Jimi Hendrix, o clima caipira do Fraternity Of Man (com outro showzinho particular de Jack nicholson), o folk dylanista de Roger McGuinn, The Holy Modal Rounders e Electric Prunes. Não se fala em Easy Rider sem se falar em sua trilha sonora. Filme e música andam de mãos dadas o tempo todo. É impossível não associar as imagens à banda sonora.

Uma das grandes críticas feitas ao longa na época reverberava na explícita apologia às drogas, feita com certa dose de irresponsabilidade por Fonda e Hooper. Os caras fumavam um baseado atrás do outro! Mas tudo acontecia naquele espírito messiânico e inofensivo da década de sessenta. Dentro da trama, a maconha não passa de um agente que os legitima naquela jornada de curtição. Easy Rider talvez tenha sido o primeiro filme a abordar o tema com tamanha contundência e coragem. Toda essa liberdade cinematográfica acabou abrindo o caminho para uma série de outros filmes, tanto que, nos anos seguintes, o tema das drogas foi vastamente explorado pelo cinema mundial. O modo como o filme foi realizado - praticamente sem um roteiro previamente amarrando a história - também foi alvo de discussão. No final das contas, essa forma deliberada de contar uma história acabou vazando e influenciando uma série de cineastas. O certo é que Fonda e Hooper não descobriram a América com Easy Rider, mas o Road Movie por excelência está na genética do filme. Como diria o poeta Gregory Corso: “Estar na esquina à espera de ninguém é poder”. Esse bordão da vagabundagem e do gerenciamento do poder, poderia ser o epígrafe daqueles que nunca abandonaram o espírito indômito da contravenção e do ócio produtivo. Billy (o bronco e explosivo) & Whytt (o mais calmo, inteligente e instrospectivo), formam a dupla de vagabundos dos sonhos, onde o único objetivo parece ser seguir em frente. É por isso que filmes como Sem Destino nunca fenecem no coração de muitos outsiders, aventureiros e desocupados de plantão. O exercício da vagabundagem deveria ser disciplina obrigatória nas universidades. Enquanto isso não acontece, temos Easy Rider e as lições de seu catecismo on the road. Um bom filme sempre faz a diferença e a ficção não passa da vida melhorada. E ponto final.

Comentários

  1. Taí a receita de um bom texto sobre cinema: unir a matéria-prima( vida) com informação...Muito legal!

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  2. Pôxa, e pensar que Jack Kerouac virou um velhote reacionário...
    Duas coisinhas, só, Márcio: Kyrie Eleison é a música dos Electric Prunes, mas o texto dá a entender que é outra banda. E, putz, tu já viste Wild Angels - filme do Roger Corman feito um ano antes de Easy Rider, também com Peter Fonda fazendo um motoqueiro outsider, contracenando com uma gostosíssima Nancy Sinatra? Diz a lenda que a idéia de fazer Easy Rider foi pegando Fonda a partir daí...
    Eu disse que eram só duas coisinhas, né? Mas tem mais uma: a versão do Roger McGuinn para It's Alright Ma (I'm Only Bleeding) é absurda!!!

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  3. Esse texto (resumido, evidentemente) daria um ótimo Recomenda.

    O que achas?

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